A carne é fraca

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21/03/2017 - 19:00

Na semana que passou, foi deflagrada mais uma operação da Polícia Federal, com o nome enigmático de “Operação Carne Fraca”. A alusão às palavras de Jesus aos discípulos, no início dos sofrimentos de sua paixão, é facilmente perceptível: “vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mc 14,38). E tem o efeito de um alerta nada insignificante!

A operação da Polícia Federal denunciou um esquema de corrupção muito preocupante no setor de fiscalização da produção de carnes em alguns frigoríficos e estabelecimentos de produção e transformação de alimentos no Brasil. A questão levantada é especialmente grave, uma vez que envolveu um setor delicado da economia, da saúde pública e da credibilidade da produção da carne, um dos produtos brasileiros mais importantes no mercado externo e interno e um dos filões mais importantes da economia brasileira.

Embora o número de pessoas responsáveis e de unidades de produção envolvidas provavelmente tenha sido bastante restrito e localizado, as consequências do problema revelado podem ser muito graves e devastadoras para a economia. Vai de embrulho a credibilidade de todo um sistema de produção e de fiscalização, onde todos pagam pela desonestidade de alguns. O dano moral e econômico pode ser altíssimo! Resta esperar que tudo seja esclarecido, de maneira eficaz, pelas autoridades responsáveis; e a população possa continuar segura daquilo que consome e confiante no serviço de vigilância dos profissionais, que têm esse dever.

O nome da operação “carne fraca”, porém, sugere ir mais a fundo na avaliação desse escândalo. Jesus recomenda a vigilância e a oração a seus apóstolos, pois “a carne é fraca”, embora o espírito pareça pronto para enfrentar os desafios e tentações que se aproximam. De fato, pouco antes dessa recomendação, Pedro havia afirmado com toda a sua instável convicção: “ainda que todos se escandalizem (de Ti), ainda que eu tenha de morrer contigo, eu não te abandonarei!” Com ele, os outros discípulos diziam o mesmo (cf. Mc 14,27-30). Sua presunção foi demasiado grande; ele, como todos os outros, menos João, abandonaram Jesus após a sua prisão; e o próprio Pedro negou conhecer o Mestre diante do medo de também ser preso.

O homem é fraco e precisa estar sempre atento e vigilante para não cair em tentação, que está sempre à espreita e pode ser muito forte, derrubando a “carne fraca”. Entre as várias tentações, estão a ganância e a busca do dinheiro fácil e desonesto. O amor ao dinheiro e às riquezas pode tornar-se uma verdadeira idolatria, levando a sacrificar qualquer coisa a esse ídolo atraente e exigente: a justiça, o respeito ao próximo, a dignidade moral e a decência, a responsabilidade social, a família e os deveres familiares, a fé em Deus, os mandamentos e tudo o que se tem como mais sagrado... O amor ao dinheiro, ao poder e às vaidades pode levar à corrupção vergonhosa e repugnante em que o Brasil está mergulhado; é uma idolatria sutil e feroz, que destrói a dignidade e faz esconder o rosto de vergonha, se ainda resta algo de dignidade a salvar... Não é sem razão que o Papa Francisco escreveu que a corrupção cheira mal...

As consequências sociais e econômicas da corrupção são enormes: com o bem público ou privado que é desviado desonestamente, deixam de ser proporcionados benefícios sociais em educação, saúde, moradia e saneamento básico, entre outros benefícios... E os efeitos devastadores da corrupção pesam mais sobre os pobres e aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade social e econômica. Por isso, a corrupção também é uma tremenda injustiça e demonstração de egoísmo e falta de senso de solidariedade. Quem se beneficia com o fruto da corrupção faz muitos pagarem o preço de sua desonestidade!

Jesus alertou que “a carne é fraca” e recomendou a vigilância e a oração, para não cair em tentação. Estamos todos expostos às fraquezas da condição humana; mas para não cedermos à corrupção, é preciso ter convicções firmes a respeito da dignidade, da justiça e da moralidade de nossas decisões e ações. Uma cultura que esvazia ou dilui os princípios éticos e morais e não os irradia na educação e na comunicação contribui para as fraquezas da carne.

Devemos ser honestos sempre; e não porque alguém poderia nos surpreender e denunciar; também não porque a polícia poderia nos prender e punir... A lei moral deve estar inscrita na consciência e nos fazer agir com retidão, sem cálculos nem descontos.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo metropolitano de São Paulo

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO - Edição 3143 - De 22 a 28 de março de 2017