Abraçar os bens que não passam

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05/12/2018 - 10:45

Estamos de “ano novo” na Liturgia... Com o 1º Domingo do Advento, iniciamos o novo Ano Litúrgico, durante o qual acompanhamos, passo a passo, a proclamação das maravilhas de Deus em nosso favor na história da salvação. É a história de Deus conosco e de nós mesmos com Deus, que assim se revela e nos salva.

Ao longo do ano litúrgico, recordamos o chamado do povo de Deus, a palavra dos profetas e a experiência dos santos, que foram fiéis e corresponderam a Deus, confiando nos seus caminhos. Recordamos a promessa da salvação e sua realização na história, mediante a vinda do Filho de Deus ao mundo, para participar de nossa vida e de nossa “carne” humana. No centro do ano litúrgico está a recordação da vida, paixão, morte, ressurreição e glorificação de Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. Segue a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos e o envio missionário da Igreja, para que ela testemunhe, “entre todos os povos e até o fim dos tempos”, a obra e a palavra salvadora de Jesus Cristo em favor de toda a humanidade. 

As celebrações do ano litúrgico também fazem a memória das maravilhas de Deus na vida da Igreja, mediante a celebração dos Sacramentos, o anúncio da Palavra de Deus e o testemunho de vida dos membros santos da Igreja. Desde que Jesus enviou os apóstolos em missão até hoje, a Igreja não cessou de fazer a memória das maravilhas de Deus em nosso favor. E continuará a fazê-lo até o fim dos tempos.

O Advento nos fala das duas vindas de Cristo: o anúncio e a consumação da primeira vinda, que aconteceu mediante o mistério da encarnação do Filho de Deus em nossa carne humana e seu nascimento da Virgem Maria. Este tempo também nos recorda a perene fidelidade de Deus às suas promessas e nos prepara para acolher no hoje de nossa história e de nossa vida o Salvador que vem ao nosso encontro. Ele já veio, mas continua a vir cada dia e, dessa maneira, também nós temos a graça de acolhê-lo e de nos colocar ao seu serviço, como fizeram Maria e José; podemos ir ao seu encontro e adorá-lo, como fizeram os humildes pastores de Belém e os Reis Magos. Temos a graça de abrir as portas de nossa vida e de nossas casas e cidades para acolhê-lo nas muitas e surpreendentes formas como Ele vem hoje ao nosso encontro. Por isso, a celebração do Natal não remete apenas ao passado, mas celebra a contínua ação salvadora de Deus. 

No 1º Domingo do Advento, a palavra de Jesus, no Evangelho, nos adverte sobre a necessidade de estarmos vigilantes e prontos para acolher a sua chegada entre nós, em qualquer tempo e circunstância. “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida” (Lc 2134). A insensibilidade diante dos sinais da chegada e da presença de Deus entre nós pode fazer-nos perder a ocasião do encontro com Ele. Jesus previne contra as coisas que vão tomando nosso tempo e nossa atenção, tornando-nos insensíveis em relação ao Deus. A “gula” pode equivaler à busca gananciosa das coisas passageiras. Nosso consumismo insaciável é uma forma de gula... Embriaguez corresponde às vaidades da vida, que são fugazes e não devem nos levar a pensar que o sentido da vida está na busca e posse das vaidades. E tantas são as “preocupações da vida” que nos afligem, distraem e requerem toda a nossa atenção, não deixando espaço para nos ocuparmos da única coisa verdadeiramente necessária na vida. 

Nossa vida neste mundo caracteriza-se como um tempo de advento, de espera dos bens prometidos por Deus e que nosso coração busca, mesmo sem que estejamos conscientes disso. Por isso, as atitudes recomendadas pela Igreja para esse tempo litúrgico específico são as mesmas que devemos cultivar a vida inteira. Vigilância atenta, para não nos perdermos e desorientarmos nas muitas tentações e preocupações da vida. Esperança no Deus fiel, na certeza de que suas promessas não são vazias, mas se cumprirão. Crescimento e operosidade na fé, para produzirmos os frutos da nossa fé e esperança, em colaboração com a graça do Espírito Santo. São Paulo recomendou, na segunda leitura desse 1º Domingo do Advento: “fazei progressos ainda maiores!” (1Ts 4,1). 

Enfim, o Advento nos mostra os “bens eternos” e desperta em nós o anseio de possuí-los, de maneira que, “passando entre os bens que passam, abracemos os que não passam”. Esta é a grande questão da vida: usar os bens deste mundo com prudência e gratidão a Deus, mas não prender o coração a eles, como se já fossem o bem último e definitivo da existência humana. Deus, com seu reino, é o supremo bem, que devemos buscar antes e acima de tudo! É disso que nos fala.

 

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 05/12/2018