Conferência de Aparecida: dez anos depois

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17/05/2017 - 23:15

No dia 13 de maio de 2017, foi recordado o 10º aniversário da abertura da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e o Caribe, em Aparecida (SP), conhecida simplesmente como Conferência de Aparecida. Foi um evento extra- ordinário, que continua a ter desdobramentos na Igreja do continente e do mundo inteiro.

Muita coisa mudou em dez anos na Igreja, incluindo a renúncia do papa Bento XVI e a sua sucessão pelo papa Francisco, que participou daquela Conferência enquanto era ainda o arcebispo de Buenos Aires. Quem podia imaginar que sua participação e atuação, como coordenador da comissão de redação do documento final da Conferência, lhe daria a oportunidade de estender para a Igreja inteira as reflexões de Aparecida? De fato, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013), primeiro grande documento do Papa Francisco, estende para a universalidade da Igreja as intuições e indicações da Conferência de Aparecida para a nova evangelização.

Neste artigo, desejo deter-me no discurso do papa Bento XVI, na abertura da V Conferência Geral, pronunciado diante dos participantes na tarde do dia 13 de maio de 2007. Esse discurso memorável ofereceu as grandes linhas de reflexão para a Conferência, e foi retomado com frequência durante as três semanas de trabalho do evento. O texto foi publicado como apêndice no Documento de Aparecida.

Após avaliar de forma positiva o encontro dos povos originários da América Latina e do Caribe com Jesus Cristo e com a fé cristã, o Papa se referiu à situação nova em que se encontram também os povos da América, devida sobre- tudo ao fenômeno da globalização. A Conferência dirá, depois, que atravessamos uma “mudança de época”. “Diante da nova encruzilhada, os fiéis esperam desta V Conferência uma renovação e revitalização de sua fé em Cristo (...), que nos revelou a experiência única do amor infinito de Deus Pai aos homens” (n.2).

O tema da Conferência, “discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”, já havia sido escolhido ainda por São João Paulo II. Bento XVI acrescentou apenas o pronome “nele”: que nossos povos tenham vida em Cristo. No discurso, o Papa pergunta: “O que Cristo nos dá realmente? Por que queremos ser discípulos de Cristo? Por que esperamos encontrar, na comunhão com ele, a verdadeira vida, a vida digna deste nome? Por que queremos dá-lo a conhecer aos demais, comunicar-lhes o dom que encontramos nele? Estamos realmente convencidos de que Cristo é o caminho, a verdade e a vida?” (n.3).

O Papa faz eco a alguns questionamentos, por vezes levanta- dos, se o anúncio de Jesus Cristo é, de fato, importante para a vida dos povos? Se isso não seria uma fuga da realidade e o refúgio numa religiosidade alienante e intimista? Sua resposta é densa e lúcida: “Mas o que é a realidade? O que é o real? São ‘realidades’ apenas os bens materiais, os problemas   sociais, econômicos e políticos?” E, qualificando essa redução do conceito de realidade como “erro grave das tendências dominantes do último século”, ele afirma: “quem exclui Deus do seu horizonte falsifica o conceito de

‘realidade’ e, como consequência,

só pode indicar caminhos equivocados e receitas destrutivas” (n.3). Uma compreensão equivocada da “realidade humana” levaria a consequências desastrosas na vida social, política e econômica...

O conhecer de Deus dá-nos a possibilidade de uma compreensão melhor da “realidade”. E Deus dá-se a conhecer à humanidade por Jesus Cristo, “rosto humano de Deus”.  Mas quem seria capaz de conhecer Deus? Só o discípulo de Jesus Cristo é capaz de conhecer Deus, fazendo a experiência do encontro profundo e constante com Jesus Cristo. Bento XVI refle- te sobre o “realismo da fé”, que não significa alienação das realidades culturais, sociais, econômicas e políticas; o realismo da fé capacita a ser missionário do Evangelho. Daí a necessidade de proporcionar sempre de novo o encontro com Cristo aos povos da América Latina e do Caribe.

Com sua reflexão, Bento XVI ofereceu uma sólida fundamentação para a nova evangelização, que será, então, marcada por esses dois focos: proporcionar o encontro pessoal e profundo com Cristo para despertar discípulos; e for- mar bem os discípulos, para que sejam missionários e levem a alegria do Evangelho a todos.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo metropolitano de São Paulo
Artigo publicado no Jornal "O Estado de S.Paulo" - Edição 17 de maio de 2017 (quarta-feira)