Eis o tempo favorável

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15/02/2018 - 09:30

Com a Quarta-Feira de Cinzas, iniciamos a Quaresma e a preparação da Páscoa. Desde os primeiros tempos do Cristianismo, a Quaresma foi considerada um tempo especialmente propício para retornar às origens da nossa fé e ao centro da vida cristã. Durante a Quaresma, os catecúmenos faziam a preparação próxima para o Batismo, que era celebrado na vigília da Páscoa.

Era também a ocasião em que os pecadores eram chamados à penitência e à reconciliação com Deus e a Igreja, reassumindo a prática comunitária da fé. E todos eram chamados, através da escuta atenta da Palavra de Deus, da oração, da caridade e da penitência, a reassumir, com renovado empenho, os propósitos batismais. A Quaresma, longe de ser um tempo triste e acabrunhante, era uma feliz e esperançosa preparação para celebrar bem o grande Mistério da Páscoa. 

Talvez estejamos distantes dessa maneira de viver a Quaresma. No entanto, não é outra coisa que a Igreja propõe para nós ainda hoje. A imposição das cinzas, no início da Quaresma, acompanhada da exortação - “convertei-vos e crede no Evangelho” - recorda o chamado inicial e permanente da nossa vida cristã: voltar-se para Cristo, o Salvador, e acolher sua palavra no “hoje” de nossas vidas e na vida comunitária. E, ao longo das semanas da Quaresma, a Igreja nos recorda, através dos textos litúrgicos e das práticas quaresmais, quais são as questões centrais da nossa fé e da vida cristã.

A Igreja também nos índica os exercícios quaresmais do jejum, da esmola e da oração: por eles, somos animados e orientados a passar de uma fé apenas intencional ou intelectual para uma fé que se traduz em obras da fé. O jejum quaresmal tem sentido religioso e nos ajuda a ter claro que “não somente de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (...). O jejum deve ser acompanhado da busca sincera de Deus, de sua palavra e de seus mandamentos. O jejum quaresmal está unido à prática do primeiro mandamento da Lei de Deus: amar, respeitar e adorar a Deus acima de todas as coisas e somente a Ele servir. 

O exercício quaresmal da “esmola” refere-se à caridade praticada de muitas formas e nos recorda que o amor a Deus e ao amor ao próximo é inseparável. No amor a Deus e ao próximo está resumida toda a Lei de Deus. A prática assídua das obras de misericórdia corporais e espirituais dá concretude ao nosso amor ao próximo. E não deve ser esquecida a “caridade social”, que se refere à nossa participação na luta contra os males que afligem a sociedade e na edificação do bem comum. 

A oração, feita de muitas maneiras, expressa nossa busca de Deus como o grande bem e o absoluto de nossas vidas. Na oração, cultivamos nossa fé e nossa condição de filhos de Deus, recebida no Batismo. A oração tem lugar central na nossa vida cristã; já no Batismo, recebemos a graça de chamar a Deus de Pai e de estarmos diante dele como filhos. Ao longo da vida inteira, precisamos exercitar-nos nas diversas formas de oração. Sem oração, nossa fé esfria ou se intelectualiza, como algo abstrato, e, finalmente, se perde em racionalizações ou ideologias, que acabam por instrumentalizar a religião e o próprio Deus. 

No Brasil, temos todos os anos a Campanha da Fraternidade durante o período quaresmal. O tema da Campanha sempre se relaciona com alguma dimensão da caridade, que somos chamados a aprofundar. A Campanha também é uma ação pedagógica e evangelizadora, mediante a qual a Igreja envolve a sociedade, sem distinção de credo, a se envolver na ação proposta. Neste ano, o tema – “Fraternidade e superação da violência” – aborda a questão muito grave da violência. O Brasil é o país onde há o maior número de mortes por causa da violência. É bom conhecer as causas da violência e refletir sobre elas. 

Mais importante, ainda, é pensar naquilo que todos podemos fazer para a superação da violência. E o lema da Campanha – “em Cristo, sois todos irmãos” – nos aponta a motivação da fé cristã para a superação desse grave mal social. Se olharmos o próximo com o respeito devido a um irmão e filho do mesmo Pai do céu, teremos a motivação mais forte para evitar a prática da violência. 

Vivamos bem a Quaresma. Este é um tempo favorável que Deus nos concede também neste ano! E, no mesmo espírito quaresmal, iniciemos a celebração do sínodo de nossa Arquidiocese, como um “caminho de comunhão, conversão e renovação missionária”.
 

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 15/02/2018