Outra vez, o aborto

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20/06/2018 - 10:15

A luta pela legalização do aborto está novamente na ordem do dia. Na Irlanda, país de sólidas tradições católicas até há poucos anos, um referendo popular avalizou a mudança da Constituição, permitindo o aborto até a 12ª. semana de gestação. Na Colômbia, da mesma forma, o aborto foi legalizado. Há poucos dias, a Câmara dos Deputados da Argentina deu o aval, com vantagem de votos, ao aborto até a 14ª semana de gestação, bastando a solicitação da gestante. Em todo o caso, a aprovação definitiva da nova disposição legal ainda depende do Senado argentino. 

E aqui, no Brasil, numa manobra ardilosa da militância pro-aborto, a legalização do aborto passou da competência do Congresso Nacional para a Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento inaceitável é que o Congresso não tem a coragem de tomar a decisão, bem sabendo que uma larga maioria da população brasileira é contrária à legalização do aborto. Estranhamente, neste caso, o STF assumirá função legislativa, em vez de guardião da Constituição, como é seu papel constitucional. O Congresso Nacional até parece sentir-se confortável com essa “cessão de competências”... 

Quem luta pela legalização do aborto usa a linguagem dissimulada de “interrupção voluntária da gravidez”, argumentando que se trata de uma afirmação da vontade individual, como valor supremo, a ser respeitado sempre, mesmo acima do direito à vida de outrem. Com essa expressão, esconde-se o efeito trágico da interrupção voluntária da gravidez, que coloca fim a uma vida humana indefesa e inocente. E quem o pode negar?

Argumenta-se que muitas mulheres, após um aborto inseguro, têm sequelas e podem até morrer, e isso pode ser verdade. No entanto, a mulher não é obrigada a fazer o aborto. E não se fala das centenas de milhares, senão dos milhões de fetos e bebês, que são voluntariamente mortos a cada ano no ventre materno em consequência de abortos “seguros” e inseguros. Por que motivo não se fazem campanhas contra o aborto, qualquer que seja a sua forma, para preservar a vida e a saúde de mães e filhos? Não seria o caso de fazer campanhas contra as clínicas abortistas e a prática do aborto doméstico e inseguro, em vez de legalizar essa prática cruel? 

O aborto clandestino é um problema de saúde pública? Pode até ser. Mas é preciso entender bem, de saída, que a gravidez não é uma doença nem representa, normalmente, um risco para a saúde da mulher. Ao se falar em “problema de saúde pública”, geralmente, os números são superdimensionados. Além disso, seria necessário falar, antes de tudo, que o aborto é um gravíssimo problema de saúde pública e um grave desrespeito aos direitos humanos, porque ceifa sem nenhuma chance de defesa a vida de milhões de nascituros, sobre cujo direito de nascer e viver a sociedade também deveria velar. E não se fala do consumo de drogas e de álcool, do hábito de fumar e da violência no trânsito, que são problemas de saúde pública muito graves. Nesses casos, muitas pessoas morrem e outras muitíssimas ficam doentes ou têm sequelas para o resto da vida, devendo ser amparadas por toda a sociedade.Argumenta-se ainda que o aborto deve ser tratado como um assunto político e democrático, não sendo aceitável a influência do discurso religioso ou moral. Francamente, é difícil imaginar que o aborto não tenha a ver com a moral, sendo que está em jogo uma decisão sobre a vida e a morte de outro ser humano! Se isso não interessa à moral, que outro assunto poderia ainda lhe interessar?! E por qual motivo as pessoas que têm fé religiosa não devam manifestar em público e defender sua posição sobre o aborto? Seriam elas cidadãos de segunda classe numa sociedade pluralista e democrática, sem o mesmo direito à livre manifestação de seu pensamento e opinião?

De toda maneira, é preciso evitar que a defesa da vida seja reduzida a um argumento religioso e de fé sobrenatural. A dignidade humana e o direito à vida não são necessariamente “assuntos religiosos” e interessam a todos. Certamente, também pessoas sem fé nem religião têm apreço à vida humana e não aceitam que se possa, simplesmente, tornar “legal” o ato de agredir ou matar uma pessoa adulta ou indefesa, mais ainda quando se trata de crianças e de bebês ainda não nascidos. 

 

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 20/06/2018