Cruz de Cristo, cruz da humanidade

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17/09/2020 - 08:45

A festa litúrgica da Exaltação da Santa Cruz e a comemoração de Nossa Senhora das Dores nos convidam a uma reflexão neste tempo de pandemia, quando uma pesada cruz caiu nos ombros de toda a humanidade. O que fazer com essa cruz, como suportá-la e como carregá-la?

Muitas reflexões e atitudes são possíveis. Podemos resignar-nos friamente diante das circunstâncias e pensar que se trata apenas da lógica da natureza, que segue seu curso: um vírus surgiu, teve a ocasião de se espalhar, produziu seu efeito, e só temos de tentar mudar o curso desse fenômeno natural mediante a intervenção humana na natureza. Há muito de verdadeiro nessa forma de pensar e agir, mas ela deixa de lado diversas questões, sobretudo as que se referem propriamente ao homem.

Nós nunca somos apenas um elemento a mais na natureza: podemos ser causadores e desencadeadores de fenômenos adversos nela. Podemos ser causa de sofrimento e cruz para os outros, mediante nossas decisões e ações inconsequentes, ou fazer pesar ainda mais a cruz nos ombros dos outros, na medida em que ficamos indiferentes diante do sofrimento e da angústia do próximo e nada fazemos para socorrê-lo.

Podemos, no entanto, também ser responsáveis e consequentes nas nossas decisões e ações, de maneira a evitar os sofrimentos e a angústia aos outros. Podemos ter uma atitude proativa diante do sofrimento alheio, fazendo o possível para aliviar a cruz dos que sofrem. Graças a Deus, vemos muito disso durante a pandemia de COVID-19, que já está se prolongando por muito tempo. A cruz, nesse caso, mesmo sendo indesejada, torna-se ocasião para o exercício das capacidades e virtudes humanas e cristãs mais elevadas.

Nem sempre podemos fazer muita coisa. Penso nos familiares de um doente internado na UTI, a quem nem podem visitar para estar a seu lado e lhe dizer uma palavra de consolo e conforto, nem podem se aproximar para lhe colocar a mão na fronte ou, simplesmente, trocar um olhar cheio de afeto e emoção. A cruz do enfermo e a de seus familiares é semelhante e pode ser carregada solidariamente. A indiferença fria seria como renegar a condição humana e os laços mais belos que unem as pessoas, como o afeto e a compaixão.

A festa da Exaltação da Santa Cruz nos faz olhar, não apenas para o objeto da cruz, mas para Aquele que nela foi pregado e nela morreu: Jesus Cristo, nosso Salvador. Ele valorizou o símbolo da cruz e lhe deu um significado novo. Antes, ela indicava castigo e condenação a uma morte cruel e vergonhosa. Depois que o Filho de Deus humanado foi condenado à morte de cruz e nela entregou sua vida pela humanidade, ela se tornou símbolo para a vida inocente aviltada pelas maldades humanas, mas entregue por amor aos outros. A cruz é símbolo da redenção diante do mal, da vida que vence a morte. Em tudo isso, temos luzes preciosas para o discernimento sobre as cruzes da humanidade atual, carregada da cruz da pandemia e de tantas outras pesadas cruzes.

Jesus Cristo carregou sobre a cruz os nossos pecados e maldades. Ele amou e perdoou até o fim. Ele não fugiu da cruz da humanidade, mas assumiu-a e bebeu o cálice da dor até o fim, em seu amor solidário pela humanidade. Precisava ser assim? Foi obrigado a fazê-lo? Não, certamente! É a “loucura da cruz”, como já se dizia no tempo de São Paulo, só compreensível à luz da “loucura do amor” de Deus pela humanidade. É o mistério da cruz, que supera e vence o mistério da iniquidade.

Aos pés da cruz, de pé, estava sua mãe, junto com algumas poucas pessoas, que permaneceram firmes com Jesus até o fim, mesmo com o coração apertado e atravessado pela espada de dor. Sofriam com Jesus, não tiveram vergonha de permanecer com Jesus, rejeitado, injuriado, condenado como malfeitor e como a vergonha da humanidade. Impotentes diante do drama, permaneceram junto da cruz de Jesus, solidários com Ele, sofrendo com Ele. Nossa Senhora das Dores é a imagem e o exemplo do que devemos fazer e de como devemos reagir diante de situações extremas vividas por nossos semelhantes, padecendo com eles, não os abandonando à sua solidão desoladora. Muitas vezes, é o que podemos fazer para ajudar os outros a carregar a sua cruz.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 16/09/2020