Cresce entre os católicos a prática da Leitura Orante da Bíblia

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Os católicos têm redescoberto uma das práticas mais antigas do Cristianismo, a Lectio Divina ou Leitura Orante da Bíblia, método de vivência e encontro pessoal com Deus.
Publicado em: 28/09/2016 - 13:45
Créditos: Fernando Geronazzo, Júlia Cabral, Victor Loscalzo /Jornal O SÃO PAULO
“Felizes são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 11,28). Essa afirmação de Jesus confirma uma verdade fundamental para a vida cristã: para seguir o Cristo é preciso antes ouvi-lo. Esse é o paradigma da relação entre o discípulo e o mestre, ouvir atentamente o que Ele tem a dizer. Mas, nos dias de hoje, como é possível vivenciar de maneira concreta esse encontro pessoal com Deus por meio de sua Palavra?  
 
Nos últimos anos, os católicos têm redescoberto uma das práticas mais antigas do Cristianismo, a Lectio Divina ou Leitura Orante da Bíblia, método pelo qual a pessoa vive um encontro espiritual com Deus por meio da Sagrada Escritura. 
 
Na verdade, esse método é anterior ao próprio Cristianismo. Estima-se que a prática da Lectio Divina data de aproximadamente o ano 180 a.C., quando os fariseus, encarregados de estudar a Torá (Sagrada Escritura judaica) e transmitir seu ensinamento ao povo, criaram um método de leitura dos textos em quatro passos. Séculos depois, comunidades cristãs primitivas começaram a adotar o método também para a leitura dos textos do Novo Testamento. 
A estrutura atual da Lectio Divina é atribuída ao monge Guigo II (falecido em 1188), que definiu os quatro passos clássicos do método: leitura, meditação, oração e contemplação 
 
Retomada
Com o passar dos séculos, a Lectio Divina foi ficando restrita à vida monástica. Somente depois do Concílio Vaticano II (década de 1960), o método voltou a se popularizar. 
A Constituição Dogmática Dei Verbum, sobre a revelação divina, foi o documento conciliar que convidou a Igreja a não somente se dedicar ao estudo das Escrituras, mas a também retomar a prática de uma relação espiritual com a Bíblia:  “Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça o colóquio entre Deus e o homem; pois ‘a Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos’ (Santo Ambrósio)”.
Mais recentemente, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, escrita pelo Papa Bento XVI em 2010, insiste na importância da Lectio Divina como base de toda a espiritualidade da Igreja. “O Sínodo insistiu repetidamente sobre a exigência de uma abordagem orante do Texto Sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de todo fiel, nos diversos ministérios e estados de vida, com a particular referência à Lectio Divina. Com efeito, a Palavra de Deus está na base de toda a espiritualidade cristã autêntica”, afirma o texto. 
 
Os quatro passos
A primeira fase (lectio) consiste em ler um trecho da Sagrada Escritura disposto a escutar o que Deus comunica. Posteriormente, medita-se sobre a leitura (meditatio), atento aos principais pontos pelos quais a Palavra viva se dirige mais diretamente ao leitor. Nessa fase, recomenda-se que o fiel se insira na história, como se fosse um personagem a mais.
Depois dessa dinâmica em que a Palavra de Deus é dirigida ao leitor, a terceira fase propõe a resposta a essa Palavra, fazendo com que, em forma de oração, o fiel se dirija a Deus (oratio).
Por fim, chega-se à quarta fase (contemplatio), momento silencioso de interiorização da experiência espiritual vivida com a leitura, meditação e oração sobre o texto, bem como seus sentimentos, afetos e propósitos colhidos nesse diálogo com Deus por meio da Escritura.
 

Iniciativas
Desde a motivação conciliar, inúmeras iniciativas surgiram com o objetivo de difundir a Leitura Orante da Biblia entre os fiéis. Irmã Rosana Pulga, religiosa da Congregação das Filhas de São Paulo (Paulinas) e fundadora do Serviço de Animação Bíblica (SAB) em Belo Horizonte (MG), ministra cursos de Lectio Divina em todo o Brasil. Ela explica que a Leitura Orante é um exercício muito simples e enriquecedor tanto para o conhecimento da Bíblia quanto para a vida espiritual pessoal e comunitária. Com o método, é possível dialogar com Deus, ouvir o que Ele tem a dizer a cada um em particular e a seu povo como um todo.
 
A Religiosa também destaca que a Leitura Orante não é um estudo bíblico, mas, como o próprio nome diz, é uma leitura divina em oração. “É uma oração transformadora que leva à prática da fé batismal, que restaura continuamente nossa imagem e semelhança com Deus”, afirma. 
O método pode ser feito individualmente ou em grupo. “A experiência da Lectio Divina é dinâmica e silenciosa ao mesmo tempo. Seus passos são interligados, não podem ser tomados como compartimentos ou gavetas os quais abrimos e fechamos uma de cada vez”, acrescenta Irmã Rosana.  
 
Nas paróquias
Nascido em Fortaleza (CE) há 11 anos, o Movimento da Transfiguração do Senhor tem por missão ensinar o caminho do encontro pessoal com Deus a partir da Lectio Divina. O movimento está presente em vários estados do Brasil e também em comunidades brasileiras nos Estados Unidos. Em São Paulo, ministra cursos sobre Leitura Orante em paróquias e possui dois grupos fixos nas paróquias Santa Terezinha do Menino Jesus, no bairro de Higienópolis, e Imaculado Coração de Maria, na Santa Cecília. Também organiza escolas de oração para adultos e promove reuniões mensais no Mosteiro São Bento, no centro da capital. 
O fundador do movimento, Cesar Augusto Nunes de Oliveira, explicou ao O SÃO PAULO que a passagem bíblica da transfiguração de Jesus inspirou os integrantes justamente por mostrar a ocasião em que os discípulos, acompanhados de Jesus, sobem ao monte, ouvem a Palavra do Pai e, em seguida, retornam para a vida cotidiana. “A partir dessa passagem, nos sentimos motivados a ensinar uma pedagogia que proporcione às pessoas a escuta de Jesus por meio de sua Palavra”, diz. 
 
Nas redes
Em tempos de cultura digital, também surgiram iniciativas de vivência da Lectio Divina em sites, redes sociais, aplicativos de mensagens ou mesmo via e-mail. Muitas ações são individuais ou de pequenos grupos, mas há também projetos institucionais, como o “Lectionautas”, realizado pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e as Sociedades Bíblicas Unidas (SBU). O programa oferece aos internautas itinerários e instrumentos que os capacita para o método da Leitura Orante adaptada à linguagem jovem. No Brasil, o projeto tem apoio da CNBB por meio da Comissão para a Juventude e é acessado pelo site www.lectionautas.com.br.
 
Textos difíceis
Muitas vezes, no contato com a Bíblia, a pessoa se depara com algumas passagens de difícil compreensão. “Isso é muito frequente, porque não temos um conhecimento ainda da Palavra por detrás da sua letra. A simbologia presente na Bíblia não é uma mentira, mas carrega em si uma realidade por ela representada”, salienta Irmã Rosana. Nesse aspecto, Religiosa chama a atenção para a importância da experiência comunitária da Lectio Divina, especialmente quando se está aprendendo o método. “Aquilo que é difícil para mim pode não ser para o outro. E, assim, a comunidade vai se ajudando mutuamente na compreensão da Palavra.” Aí também entra a dimensão eclesial da Lectio Divina, quando a Igreja cumpre o seu papel de ajudar o povo de Deus a interpretar corretamente a Sagrada Escritura por meio de seu ensinamento e da indicação de livros que ajudam no esclarecimento dos textos bíblicos. 
 
O Padre Boris Augustin Nef Ulloa, doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e professor da PUC-SP, afirma: “A Escritura deve ser lida, mas mais do que lida, deve ser interpretada – à luz da Igreja – e colocada em prática”. Já o Cônego Celso Pedro da Silva, doutor em Teologia Bíblica pelo Instituto Angelicum de Roma e diplomado em Arqueologia Bíblica pela Ecole Biblique et Archéologique, de Jerusalém, reforça: “O Espírito Santo ilumina aquele que lê”. Ambos chamam atenção para o sentido sobrenatural que uma leitura viva oferece e o que a Lectio Divina proporciona ao leitor: ler como palavra viva, escrita para cada pessoa.