Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé recomenda manutenção do costume de sepultar os mortos

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A cremação não está proibida, desde que a sua escolha não seja motivada por razões contrárias a fé cristã
Publicado em: 08/11/2016 - 16:00
Créditos: Fernando Geronazzo / Jornal O SÃO PAULO
O cuidado e o respeito com o sepultamento dos falecidos está presente na tradição desde os primórdios. Basta pensar que os primeiros cristãos, perseguidos pelo Império Romano, se reuniam e celebravam seus ritos junto aos túmulos dos irmãos defuntos, nas catacumbas, consideradas um dos primeiros “templos” do Cristianismo. 
Nas proximidades da Comemoração dos Fiéis Defuntos, popularmente conhecida como Dia de Finados, em 2 de novembro, a Congregação para Doutrina da Fé publicou, em 25 de outubro, a instrução Ad resurgendum cum Christo (para ressuscitar com Cristo), sobre o sepultamento dos falecidos e a conservação das cinzas da cremação. 
 
O documento tem objetivo de esclarecer dúvidas que possam surgir em relação à legislação canônica vigente sobre o tema, sobretudo no que diz respeito à cremação, atualmente bastante difundida, inclusive entre católicos. 
Na apresentação da instrução, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Gerhard Müller, explicou que a norma eclesiástica vigente em matéria de cremação de cadáveres é regulada pelo Código de Direito Canônico e diz que “a Igreja recomenda vivamente que se conserve o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à doutrina cristã.”
 
O Doutor em Direito Canônico e vice-chanceler do Arcebispado de São Paulo, Padre Everton Fernandes Moraes, explicou ao O SÃO PAULO que o documento, enquanto instrução, “repõe as razões doutrinais pelas quais a Igreja recomenda insistentemente que se conserve o costume de sepultar os corpos dos fieis defuntos e, ao mesmo tempo, determina quais são as razões em que a Igreja admite a cremação para os corpos dos fiéis defuntos, sendo eles: higiene, econômicos e ou sociais, reafirmando, por fim, ser inadmissível que outros motivos, contrários a doutrina cristã, sejam assumidos como razoáveis para tal escolha.” 
 

Tradição  

O documento diz que, seguindo a antiga tradição cristã, a Igreja recomenda insistentemente que os corpos dos falecidos sejam sepultados no cemitério ou num lugar sagrado. “Ao lembrar a morte, sepultura e ressurreição do Senhor, mistério à luz do qual se manifesta o sentido cristão da morte, a inumação [enterro] é a forma mais idônea para exprimir a fé e a esperança na ressurreição corporal”, ressalta. 
Ainda segundo a instrução, “enterrando os corpos dos fiéis defuntos, a Igreja confirma a fé na ressurreição da carne e se separa de comportamentos e ritos que envolvem concepções errôneas sobre a morte: seja o aniquilamento definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o universo; seja como uma etapa no processo da reencarnação; seja ainda, como a libertação definitiva da ‘prisão’ do corpo.” 
 

Respeito e dignidade humana 

Segundo o doutor em Teologia e professor da PUC-SP, Cônego Antonio Manzatto, a compreensão da Igreja sobre a questão do sepultamento, cremação ou tratamento respeitoso dos restos mortais significa, em primeiro lugar, à dignidade humana. “É verdade que as pessoas não estão resumidas no corpo, mas o corpo foi a sua maneira de estar no mundo. Portanto, respeitar seus restos mortais é, de alguma forma, respeitar as pessoas e sua dignidade”, explicou à reportagem.  
 
“Se tratamos de qualquer maneira os restos mortais, isso significa que não valorizamos nada daquilo que está no mundo. E a Igreja sempre foi favorável de que se valorizem as coisas que estão no mundo, uma vez que o ser humano existe nele”, acrescentou o teólogo. 
A instrução também confirma que a sepultura nos cemitérios ou em outros lugares sagrados “responde adequadamente à piedade e ao respeito devido aos corpos dos fiéis defuntos, que, mediante o Batismo, se tornaram templo do Espírito Santo e dos quais, ‘como instrumentos e vasos, se serviu santamente o Espírito Santo para realizar tantas boas obras”.
 

Memória histórica

Cônego Manzatto destacou que outro aspecto a ser levado em conta em relação ao respeito com os restos mortais humanos está relacionado com a valorização da memória histórica. “É uma maneira de ter presente que o mundo não começou conosco. Não somos as primeiras pessoas do mundo, viemos não só de alguns lugares, mas de algumas pessoas, de seus projetos e suas ideias. Nós somos antecedidos por pessoas que prepararam o mundo, que nos testemunharam sua fé. Respeitar seus restos mortais é uma forma de respeitar sua memória”, disse. 
 

Cremação e a doutrina

A cremação passou a ser admitida pela Igreja Católica a partir do momento em que os católicos cada vez mais começaram a praticar esse hábito que, no passado, era mais comum nas culturas orientais. 
Logo no início do texto, o novo documento recorda que a Igreja estabeleceu que a prática a cremação não é em si mesma contrária à religião cristã por meio da Instrução Piam et constantem, de 1963, publicada pelo então chamado Santo Ofício. Esse texto afirmava, ainda, que não devem ser negados os sacramentos e as exéquias àqueles que pediram para ser cremados, desde que esses não manifestem tal desejo motivados por razões que neguem dogmas cristãos, ou ainda, “por ódio contra a religião católica e à Igreja”.  Essa mudança da disciplina eclesiástica foi consignada no Código de Direito Canônico (1983) e no Código dos Cânones da Igreja Oriental (1990).
 
O recente documento reafirma o ensino eclesial sobre o tema que diz que “a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à onipotência divina de ressuscitar o corpo. Por isso, tal fato não implica uma razão objetiva que negue a doutrina cristã sobre a imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos”.  
 

Ressurreição

Nesse sentido, Cônego Manzatto reforçou que a cremação de um corpo não impede a ressurreição dos corpos professada na fé católica. Esse era um dos motivos pelos quais, no passado, havia cautela por parte dos cristãos. Ele explicou que assim como Deus cria a partir do nada “a recriação que Deus faz na ressureição não depende que lhe forneçamos uma ‘matéria-prima’”. 
“Não é necessário que os ossos ou outros elementos do corpo humano estejam intactos para que haja a ressureição”, argumentou o teólogo, recordando algumas situações extremas, como os casos das pessoas que morrem queimadas em incêndios, cujos restos mortais praticamente desaparecem e nem podem ser sepultadas convenientemente. Ele lembrou, ainda, o tempo das grandes travessias oceânicas, quando aconteciam muitas mortes e os corpos tinham que ser jogados ao mar por uma questão sanitária, assim com acidentes aéreos e até espaciais. “Temos acidentes nos quais os corpos das pessoas foram parar no fundo do mar, e não há condições de resgate. 
 

Conservação 

Apesar de não excluir a prática da cremação, a Igreja, por meio da instrução, salienta que, quaisquer que sejam as motivações legítimas que levaram à escolha da cremação do corpo de um falecido, suas cinzas “devem ser conservadas, por norma, num lugar sagrado, isto é, no cemitério ou, se for o caso, numa igreja ou num lugar especialmente dedicado a esse fim determinado pela autoridade eclesiástica.”
“Os fiéis defuntos fazem parte da Igreja, que crê na comunhão ‘dos que peregrinam na terra, dos defuntos que estão levando a cabo a sua purificação e dos bem-aventurados do céu: formam todos uma só Igreja’”, diz o documento, chamando a atenção para o costume primitivo dos cristãos de que seus falecidos sejam objeto de orações e de memória por parte da comunidade e seus túmulos tornaram-se lugares de oração, de memória e de reflexão. 
 
Por esse motivo, a conservação das cinzas num lugar sagrado pode contribuir para que não se corra o risco de afastar os defuntos da oração e da recordação dos parentes e da comunidade cristã. “Por outro lado, deste modo, se evita a possibilidade de esquecimento ou falta de respeito que podem acontecer, sobretudo depois de passar a primeira geração, ou então cair em práticas inconvenientes ou supersticiosas”, acrescenta o texto. 
 
Padre Everton explicou que a legislação canônica entende por lugares sagrados “aqueles destinados ao culto divino e ou à sepultura dos fiéis, mediante dedicação ou bênção.”
“Dentre estes lugares sagrados estão as igrejas (cân. 1214), os oratórios (cân. 1223), as capelas particulares (cân. 1226), os Santuários (cân. 1230) e os cemitérios (cân. 1240). Quanto aos cemitérios, sendo próprios da Igreja devem desde sua fundação serem abençoados, tratando-se de cemitérios civis, estes devem ter os túmulos benzidos por vez (cân. 1240 §2)”.
 

Exceções

A legislação civil não proíbe a conservação de cinzas humanas em casa ou sua dispersão em alguns lugares, embora comecem a surgir restrições para determinados locais públicos, como parques, jardins ou praças, por questões de higiene e saúde pública. A mesma concessão não ocorre em relação a outros tipos de restos mortais, como ossos, que devem sempre ser conservados em ambientes autorizados por lei, especialmente cemitérios ou locais que seguem regulamentação legal. 
A instrução da Santa Sé não exclui que, em casos de circunstâncias graves e excepcionais, dependendo das condições culturais de carácter local, as cinzas de falecidos possam ser conservadas em casa, mediante autorização da autoridade eclesiástica local.  
Padre Everton também esclareceu que, na prática, a instrução não determina como uma família deve fazer para conseguir a autorização para conservar as cinzas no lar. “A instrução prevê essa possiblidade apenas em casos ‘graves e excepcionais’, e aqui se observe que são dois conceitos normalmente usados pelo legislador para atribuir ‘extrema’ necessidade”, explicou.

Autorização

A instrução, na verdade, determina a quem se deve solicitar essa autorização, no caso, o “Ordinário”, que, segundo a legislação canônica, pode ser o papa, o bispo diocesano, o vigário geral e episcopal, os superiores provinciais para as congregações religiosas, e outros, que, segundo as determinações da conferência dos bispos poderá dar ou não essa autorização. “Sendo que o instrutor não determinou o modo de concessão dessa autorização, caberá a cada bispo diocesano determinar como a mesma deverá ser solicitada e concedida”. 
Mesmo com a devida autorização para a conservação das cinzas em casa, o documento é categórico ao afirmar que essas não podem ser divididas entre os vários núcleos familiares e deve ser sempre assegurado o respeito e as adequadas condições de conservação das mesmas.  
De igual modo, para evitar qualquer tipo de equívoco “panteísta, naturalista ou niilista”, a instrução determina que não seja permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou em qualquer outro lugar, prática muito difundida em algumas culturas. “Exclui-se, ainda, a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos”. 
 

Em São Paulo 

Os grandes santuários e catedrais possuem a tradição de construírem criptas em seus subsolos, onde são sepultados bispos, arcebispos e personalidades da história das cidades e da igreja local. 
Embora pouco conhecidas, além dos cemitérios católicos, há igrejas na Arquidiocese de São Paulo que possuem espaços de oração destinados a conservação de restos mortais, inclusive cinzas dos fiéis. Um dos mais populares deles é a Paróquia Nossa Senhora de Fátima e São Roque, em Sapopemba, na zona Leste, que possui no seu subsolo uma capela-ossuário com mais de 9 mil gavetas que podem ser adquiridas pelos fiéis para a conservação ossos ou cinzas de seus entes queridos. 
 
A maioria dos restos mortais depositados nessa capela são de falecidos cujos corpos foram sepultados em cemitérios e, após exumação posterior, foram transladados para esse local sagrado. 
Mais recentemente, outras paróquias, como a Paróquia Nossa Senhora do Brasil, no Jardim América, na zona Sul, também possui um pequeno espaço para a conservação das cinzas dos falecidos, justamente com o objetivo de oferecer aos fiéis uma alternativa para uma destinação respeitosa dos restos mortais de seus entes.  
 
O Cemitério Gethsêmani Anhanguera, da Arquidiocese de São Paulo, na Vila Sulina, zona Oeste, também possui no subsolo da capela um espaço com ossuário e cinerário para a conservação das cinzas. Semelhante ao sepultamento em jazigos, esses espaços são adquiridos pelas famílias, que pagam uma manutenção semestral.