‘Ciência e fé são complementares’

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Bruno Dias contou ao O SÃO PAULO como concilia os estudos astrofísicos com sua fé católica
Publicado em: 12/01/2018 - 10:15
Créditos: Redação

Arquivo Pessoal

Bruno Moreira de Souza Dias é bacharel em Física com habilitação em Astronomia pelo Instituto de Física da USP, e Mestre e Doutor em Astrofísica pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Em 2015, recebeu o prêmio de melhor tese de doutorado em Astronomia do IAG- USP. Ele fez pós-doutorado na Durham University, na Inglaterra. Atualmente é pesquisador e astrônomo de suporte no Observatório Europeu Austral (ESO), no Chile. Ele falou ao O SÃO PAULO de sua experiência de trabalho e sobre como concilia os estudos astrofísicos com sua católica

 

O SÃO PAULO - A ASTROFÍSICA É UM RAMO BEM ESPECÍFICO DO CONHECIMENTO. O QUE TE LEVOU A SEGUIR ESSA ÁREA?

Bruno Moreira de Souza Dias - Tenho duas inspirações marcantes na minha infância e adolescência. Minha família sempre valorizou muito a qualidade da educação, em particular, meu pai sempre estimulou a curiosidade pelos fenômenos da natureza, e costumava dizer: “Se você não sabe algo, pergunte; se eu não sei, vamos descobrir.” Lembro que no dia 3 de novembro de 1994, meu aniversário de 9 anos, houve um eclipse solar total visto do Brasil, que acompanhei com meus pais e isso me abriu os olhos para o Universo. Minha segunda inspiração foram as olimpíadas de Matemática, Física e Astronomia e clubes de ciências que participei ativamente, ganhando várias medalhas em nível regional e nacional.

 

E A TUA PARTICIPAÇÃO NESSE PROJETO NO CHILE? QUAL A IMPORTÂNCIA DE UM BRASILEIRO FAZER PARTE DESTE SELETO GRUPO DE PESQUISADORES?

O ESO é uma organização intergovernamental que conta atualmente com 15 países membros, e o Brasil está em tramitação para tornar-se o 16o. Com 55 anos de existência, o ESO é a maior organização astronômica do mundo e possui telescópios no Norte do Chile usados por astrônomos do mundo inteiro. Além dos telescópios, no ESO promovemos a pesquisa astronômica em suas sedes e também em congressos internacionais. Entre outros projetos, começamos a construção do maior telescópio óptico/infravermelho do mundo, o ELT, com espelho primário de 39m de diâmetro protegido por uma cúpula de aproximadamente 80m de altura, comparável à basílica da Sagrada Família de Barcelona.

Minha participação começou como estudante, quando estava no doutorado, e continua agora no período de pósdoutorado. Não sou o único brasileiro no ESO. O Cláudio Melo é o diretor científico do ESO no Chile, e há outros dois brasileiros. O ESO contrata astrônomos de qualquer país, seja membro ou não. Um dos objetivos do programa de fellowship, do qual participo atualmente, é que sejamos uma ponte para levar o conhecimento específico dos telescópios e procedimentos do ESO para as universidades e instituições de pesquisa do nosso país de origem. Nesse aspecto, mantenho colaborações científicas ativas com pesquisadores brasileiros e seus estudantes em diversas cidades do Brasil.

 

COMO É O DIA A DIA DE TRABALHO NESSE OBSERVATÓRIO?

Como fellow do ESO, meu trabalho tem duas partes. Devo desenvolver pesquisa astronômica de forma independente, liderar projetos e grupos de pesquisa. Essa parte é desenvolvida na sede em Santiago, além de visitas a instituições de pesquisa e congressos nacionais e internacionais para colaborações. A outra atividade é um serviço para a comunidade científica, trabalhando como astrônomo de suporte para as observações de projetos de pesquisadores do mundo inteiro que são selecionados pelo ESO. O suporte aos telescópios é feito in situ , no deserto do Atacama, onde trabalhamos por turnos de seis a 14 noites, num total de 80 noites por ano. São mais de 170 pessoas trabalhando por dia no observatório, que já foi cenário do filme “007 Quantum of Solace”. Há trabalho 24 horas por dia, diariamente. Durante o dia, é feito manutenção e preparação para passar a noite desvendando os mistérios do Universo. 

Além de operar os telescópios, desenvolvemos projetos de prevenção e manutenção dos equipamentos, e também fazemos a caracterização de novos equipamentos para oferecer estabilidade e controle sobre os instrumentos usados pela comunidade.

 

NO INÍCIO DO ANO PASSADO, SURGIRAM NOTÍCIAS SOBRE A DESCOBERTA DE PLANETAS QUE POSSUEM CONDIÇÕES DE VIDA. É POSSÍVEL MESMO QUE EXISTA ALGUMA FORMA DE VIDA NESSES PLANETAS?

A primeira descoberta de planetas fora do nosso Sistema Solar, chamados exoplanetas, aconteceu no início da década de 90. O número de exoplanetas confirmados cresceu lentamente desde então e dobrou nos últimos cinco anos, chegando a mais de 3 mil, com o advento de missões dedicadas a buscar mais exoplanetas.

Planetas gigantes do tamanho de Júpiter ou maiores são mais facilmente detectáveis. A descoberta anunciada em fevereiro de 2017 revelou sete planetas do tamanho da Terra orbitando a estrela anã vermelha TRAPPIST-1. Três desses planetas orbitam na zona habitável, o que significa que possuem temperaturas propícias para água líquida.

Esse é o primeiro requisito para buscar possíveis formas de vida. Vale destacar que a distância dessa estrela é de 40 anos-luz, mais de 2,6mi de vezes mais longe que o nosso Sol. Essa distância é pequena se comparada aos 100 mil anos-luz de diâmetro da nossa Galáxia, a Via Láctea, que possui mais de 10 bilhões de planetas do tipo da Terra, segundo estimativas recentes. Muitas novidades virão quando o novo telescópio espacial JWST for lançado ao espaço em 2019 e o ELT do ESO entrar em operação em 2024.

 

POR MEADOS DE 2017, O VATICANO REALIZOU UM CONGRESSO HOMENAGEANDO O PADRE LAMAÎTRE, REUNINDO ACADÊMICOS PARA DISCUTIR OS BURACOS NEGROS E OUTROS ASSUNTOS DA ÁREA. O QUE INTERESSARIA À SANTA SÉ ESSES ASSUNTOS? É ALGO RELEVANTE PARA A RELAÇÃO DA RELIGIÃO COM O MUNDO?

A relação do Vaticano com a Astronomia não é nenhuma novidade. O calendário civil que usamos é chamado calendário gregoriano, pois foi formulado por um comitê convocado pelo Papa Gregório XIII, em 1582, após o Concílio de Trento. Desde então, o Vaticano incentivou e promoveu estudos astronômicos. Em 1891, o Papa Leão XIII emitiu o Motu Proprio Ut mysticam , por meio do qual reinaugurou o Observatório do Vaticano, que está ativo até hoje. Entre seus objetivos está o de mostrar à sociedade que a Igreja é aberta ao diálogo com a ciência, e o faz de forma rigorosamente profissional. 

Padre Lemaître foi um astrofísico belga, contemporâneo de Albert Einstein, Edwin Hubble e Arthur Eddington, com quem discutiu suas ideias que foram, então, expandidas da Bélgica para o mundo. Ele foi pioneiro na teoria cosmológica do Big Bang, pela qual foi indicado ao Prêmio Nobel de Física, em 1952, e não ganhou, pois naquele tempo a Cosmologia não era contemplada pelo prêmio. Teorias modernas do Big Bang defendem uma singularidade gravitacional que também estaria presente em buracos negros. A detecção de ondas gravitacionais, previstas pela teoria da relatividade de Einstein e geradas em eventos como a fusão de buracos negros, abriu novos caminhos para entender o início do Universo.

 

E DE FORMA PESSOAL, TUA VISÃO DE MUNDO MODIFICOU COM O APROFUNDAMENTO DOS ESTUDOS ASTROFÍSICOS? COMO CONCILIAR TUDO ISSO COM A FÉ?

Sempre me interessei por esses assuntos desde pequeno, e os estudos acadêmicos reforçaram meu fascínio pela Astrofísica e abriram minha mente para explorar o desconhecido. O segredo na ciência é fazer a pergunta certa para a natureza e não ter medo da resposta. Partindo de um astrofísico e católico como eu, essa atitude pode parecer antagônica para uma pessoa com pouca informação sobre ciência ou sobre fé. 

Astrofísica é uma descrição bastante detalhada e rigorosa do Universo seguindo o método científico. A fé é um ato humano movido por Deus que dá assentimento à verdade divina. Em outras palavras, Deus criou o Universo (ou os universos), e, com a nossa inteligência, descrevemos por meio da Astrofísica como foi a origem do nosso Universo e sua evolução, seguindo as leis intrínsecas da natureza. 

Na área de Astrofísica, algumas perguntas populares no momento são: Como o Universo foi criado? Como foi o Big Bang? O que existia antes? Existem outros Universos? E também: Existe vida fora da Terra? Estamos sozinhos no Universo? Como os planetas e a vida se formam? Essas perguntas sobrepõem-se com muitos temas filosóficos e as respostas, parcialmente conhecidas, não contradizem de nenhuma forma a fé cristã. A ciência só pode responder sobre fenômenos naturais, enquanto o estudo da fé responde sobre temas sobrenaturais. Ciência e fé são complementares. Por exemplo, se existir vida inteligente em outro planeta, não significa que toda a história da redenção humana deve ser descartada, mas que essa aliança foi específica para nós humanos. Nem a possível existência de outros Universos tampouco qualquer teoria que descreva o que aconteceu antes do Big Bang podem provar ou refutar a existência de um Deus criador. De igual modo, a existência de Deus criador não limita os estudos em Astrofísica.

O importante nessa discussão clichê e nada trivial entre ciência e religião é que haja respeito mútuo e diálogo aberto, sempre e quando se conserve os limites do natural e do sobrenatural. 

 

As opiniões expressas na seção “com a palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.