‘Laudate Deum’: publicada exortação do Papa sobre a crise climática

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Considerado a continuação da encíclica Laudato si’, documento reafirma que problema ambiental está ligado à dignidade da vida humana e ao cuidado da criação
Publicado em: 04/10/2023 - 15:30
Créditos: Redação

“Louvai a Deus por todas as suas criaturas”. Com essas palavras, o Papa Francisco começa a exortação apostólica Laudate Deum, sobre a crise climática, publicada na manhã desta quarta-feira, 4.

Dirigindo-se “a todas as pessoas de boa vontade”, o Santo Padre recorre ao convite feito por São Francisco de Assis, cuja memória litúrgica é comemorada nesta data, para dar continuidade à reflexão feita na encíclica Laudato si’, em 2015, quando partilhou sua “profunda preocupação” pelo cuidado da casa comum, como expressou agora, “nosso maltratado planeta”

“Com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando de um ponto de ruptura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos”, enfatizou o Pontífice, definindo esse como “um problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana”.

O Santo Padre reforça que a preocupação com a mudança climática ultrapassa uma abordagem meramente ecológica e “os efeitos das alterações climáticas recaem sobre as pessoas mais vulneráveis e, por isso, não se trata de uma questão secundária ou ideológica, “mas de um drama que nos prejudica a todos”.  

ACESSE A ÍNTEGRA DA EXORTAÇÃO APOSTÓLICA LAUDATE DEUM

CRISE GLOBAL

Reconhecendo que há quem negue ou relativize a crise climática global, Francisco afirma que os sinais da mudança climática se impõem de forma cada vez mais evidente. “Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenômenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que nos afeta a todos”, continuou, ponderando que nem todas as catástrofes se podem atribuir à alteração climática global, mas é possível verificar que certas mudanças climáticas, induzidas pelo homem, aumentam significativamente a probabilidade de fenômenos extremos mais frequentes e mais intensos.

O Santo Padre salienta que já não se pode pôr em dúvida a origem humana da mudança climática. Para explicar, ele recorda que a concentração na atmosfera dos gases com efeito estufa, que causam o aquecimento global, manteve-se estável até ao século XIX. Mas, em meados daquele século, em coincidência com o progresso industrial, as emissões começaram a aumentar. Nos últimos cinquenta anos, o aumento sofreu uma forte aceleração.

“Ao mesmo tempo, notamos que, nos últimos cinquenta anos, a temperatura aumentou a uma velocidade inédita, sem precedentes nos últimos dois mil anos”, observa, considerando ser “impossível esconder a coincidência destes fenômenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX”.

Francisco destaca, ainda, que os elementos naturais típicos que provocam o aquecimento, como as erupções vulcânicas e outros, não são suficientes para explicar a percentagem e a velocidade das alterações registadas nos últimos decênios e acrescenta que já são irreversíveis, pelo menos durante centenas de anos, algumas manifestações desta crise climática, como o aumento da temperatura global dos oceanos, a acidificação e a redução do oxigênio, a redução dos glaciares continentais, as alterações nos fluxos oceânicos e a desflorestamento das selvas pluviais tropicais.

“Podemos acrescentar que a pandemia Covid-19 veio confirmar a estreita relação da vida humana com a dos outros seres vivos e com o ambiente, mostrando de modo particular que aquilo que acontece em qualquer parte do mundo tem repercussões sobre todo o planeta”, completa o Papa.

TECNOCLOGIA E PODER

O Pontífice também dedica uma parte da exortação apostólica para tratar do “paradigma tecnocrático”, tema que explicou brevemente na Laudato si’ e que está na base do processo atual de degradação ambiental.

“Nos últimos anos, pudemos confirmar este diagnóstico, assistindo simultaneamente a um novo avanço de tal paradigma. A inteligência artificial e os recentes progressos tecnológicos baseiam-se na ideia dum ser humano sem limites, cujas capacidades e possibilidades se poderiam alargar ao infinito graças à tecnologia. Assim, o paradigma tecnocrático alimenta-se monstruosamente de si próprio”, afirma.

O Santo Padre recorda que os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas considera que o problema maior é “a ideologia que está na base de uma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço”.

Nesse sentido, o Bispo de Roma enfatiza que nem todo o aumento de poder é um progresso para a humanidade. “Houve momentos da história em que a admiração pelo progresso não nos permitiu ver o horror dos seus efeitos. Mas este risco está sempre presente, porque ‘o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência (…), ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar’”.

Contrariamente a este paradigma tecnocrático, o Papa afirma que o mundo não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites. Ele acrescenta que se exclui a ideia de que o ser humano seja um estranho, um fator externo capaz apenas de danificar o ambiente. “Mas deve ser considerado como parte da natureza. A vida, a inteligência e a liberdade do homem estão inseridas na natureza que enriquece o nosso planeta, fazem parte das suas forças internas e do seu equilíbrio”.

Foto: Vatican Media

POLÍTICA INTERNACIONAL

Ao falar sobre a responsabilidade dos agentes políticos na luta contra a crise climática, o Pontífice ressalta a importância dos acordos multilaterais entre os Estados. No entanto, observa que não é conveniente confundir o multilateralismo com uma autoridade mundial concentrada em uma só pessoa ou em uma elite com excessivo poder.

“Mais do que salvar o velho multilateralismo, parece que o desafio hoje seja redesenhá-lo e recriá-lo à luz da nova situação global”, exorta Francisco, convidando ao reconhecimento de que “muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais”.

“Não se trata de substituir a política. As potências emergentes estão a tornar-se cada vez mais relevantes e são realmente capazes de obter resultados significativos na resolução de problemas concretos, como algumas delas demonstraram na pandemia”, completa, enfatizando a necessidade de espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior “democratização” na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações.

CONFERÊNCIAS CLIMÁTICAS

O Santo Padre também escreve sobre as várias conferências climáticas realizadas ao longo das décadas, com seus “progressos e falimentos”, considerando que os acordos firmados pelos países nesses encontros tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações.

“Os princípios enunciados continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática. E também que as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles que hão de sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência e de responsabilidade”, destaca.

Sobre a próxima conferência, a COP28, que ocorrerá em novembro, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o Papa alimenta a confiança na capacidade de o ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar grande. “É verdade que são necessários esforços de adaptação face a males irreversíveis a curto prazo e são positivas algumas intervenções e progressos tecnológicos para absorver ou capturar os gases emitidos, mas corremos o risco de ficar bloqueados na lógica do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto, no fundo, avança um processo de deterioração, que continuamos a alimentar. Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido com novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida, como pontapear uma bola de neve”.

Em seguida, Francisco faz um apelo: “De uma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses econômicos. Admitamos, finalmente, que se trata de um problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis. Por isso requer-se o envolvimento de todos”.

MOTIVAÇÕES ESPIRITUAIS

Dirigindo-se aos fiéis católicos, o Papa recorda as motivações que brotam da sua fé para o cuidado do meio ambiente.

“A Bíblia conta que ‘Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa’ (Gn 1, 31). D’Ele é ‘a terra e tudo o que nela existe’ (Dt 10, 14). Por isso diz-nos Ele: ‘Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes’ (Lv 25, 23). Assim, ‘esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo’”, explica.

Francisco recorda que Jesus “podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração”.

“De fato, ‘nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde’”, continua o Santo Padre, convidando cada um a acompanhar o percurso de reconciliação com o mundo que abriga a humanidade e a enriquecê-lo com o próprio contributo, “pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores”.Francisco conclui explicando que Laudate Deum é o título desta carta, “porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo”.