Na Vigília Pascal, 29 ex-moradores de rua são batizados

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<p>Em torno de uma fogueira diante do Marco Zero da cidade de São Paulo, na praça da Sé, começou a celebração da solene Vigília Pascal</p>
Publicado em: 05/04/2015 - 08:00
Créditos: Reportagem

Em torno de uma fogueira diante do Marco Zero da cidade de São Paulo, na praça da Sé, começou a celebração da solene Vigília Pascal na noite deste Sábado Santo, 4. Do fogo novo, abençoado pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo, foi aceso o círio pascal, grande vela que representa o próprio Jesus Ressuscitado, que iluminou a escuridão da Catedral Metropolitana, a medida em que as pessoas acendiam suas velas da chama do círio.

Esta é considerada a “mãe de todas as vigílias” pois anuncia o ponto alto da fé cristã, a ressureição de Jesus. A Liturgia da Palavra é composta de sete leitura do Antigo Testamento, que narram a história da Salvação do Povo de Deus, salmos e orações até que é entoado solenemente o hino de louvor “Glória a Deus nas Alturas”, quando as velas do altar são acesas e os sinos tocam festivamente. Em seguida, é proclamada a leitura da Carta de São Paulo aos Romanos. O Evangelho da ressureição é precedido da aclamação “Aleluia”, que durante toda a Quaresma não foi entoado. 

 

Outro momento significativo da Vigília é a Liturgia Batismal, na qual foram batizados 29 ex-moradores de rua acolhidos pela Missão Belém, alguns deles, também ex-usuários de drogas, que tiveram suas vidas restauradas e agora inseridos no corpo de Cristo pelo Batismo. Com eles, todos os fiéis renovaram suas promessas batismais.

“No Batismo, realiza se para nós o mistério da Páscoa. Jesus morreu por causa do pecado. No Batismo, somos mergulhados em Cristo e recebemos a vida nova em Cristo”, afirmou Dom Odilo, na homilia, convidando todos a fazer o propósito de renovar sua adesão à Cristo feita no Batismo.

Depois de batizados, os novos cristãos receberam o sacramento da Confirmação, ungidos com o óleo do Crisma, e receberam a primeira Eucaristia. 

Agora, eles têm um único vício: servir a Deus


Por Henrique Sebastião

A reportagem do jornal O SÃO PAULO da última semana contou a história de dois que foram batizados na Catedral. Confira.

A Associação Missão Belém, obra da Igreja Católica em São Paulo, foi fundada pelo Padre Gianpietro Carraro e pela Irmã Cacilda da Silva Leste, no ano 2005, com o propósito de recuperar homens, mulheres e crianças em situação de rua, especialmente dependentes químicos, por meio do trabalho de missionários consagrados e leigos voluntários.
Em uma década de atividades, já resgatou mais de 40 mil pessoas em suas 150 casas de restauração. Muitos dos internos, ex-drogados acolhidos, sabem como ninguém trabalhar no convencimento dessa população das ruas e praças, para que aceitem abandonar a vida das ruas e acreditar que a recuperação é possível.

“Vila Guadalupe” é uma dessas casas de acolhida, localizada na rua Dr. Clementino, no bairro do Belém. Quem a visita e vê tanta gente vinda das ruas, geralmente viciadas em drogas e com pesadíssimos históricos de violência e maus-tratos, fica impressionado com o ambiente fraterno e amoroso que reina ali. 

 

‘Deus está comigo e tudo vai mudando’

Um deles é Sebastião Nunes de Souza de Souza, 53, natural de Carlos Chagas (MG). Pedreiro, há 25 anos deixou pai, mãe e irmãos e veio, sozinho, aventurar-se em São Paulo, em busca de trabalho. Nessas duas décadas e meia, casou-se e teve três filhas, mas após alguns anos perdeu o controle do seu velho hábito de tomar “aperitivos diários”.

O costume se tornou vício. Sebastião descobriu que era alcoólatra e não conseguia mais largar a bebida. Aos poucos, o vício “tomou conta de tudo”, recorda. Ele perdeu o trabalho e quase a família, mas depois de longos anos de intenso sofrimento, Jéssica, a filha mais velha, 25, insistiu que ele procurasse ajuda na Missão Belém. Sebastião, massacrado moral e fisicamente, aceitou. Há quatro meses na casa de acolhida, sente-se plenamente recuperado. Sua família o visita regularmente e espera ansiosa pela sua saída, mas consciente de que não adianta querer antecipar a lenta recuperação: há um tempo para a retomada da vida comum, e os coordenadores da Missão sugerem um período entre seis e nove meses.

Enquanto a esposa de Sebastião, que também teve papel fundamental em sua recuperação, “segura as contas em casa”, ele diz que se sente bem entre seus “irmãos”, os outros acolhidos, e conta que viu sua fé despertar, ganhando uma importância que nunca tivera, enquanto se liberta química e psicologicamente do vício.

“Eu acordava e já ia para o boteco”, diz. “Chegava ao trabalho com pelo menos duas doses ‘no peito’. Era o dia inteiro bebendo, até não poder trabalhar mais. Graças a Deus, meu organismo aguentou; hoje, creio plenamente que retornarei bem para meus familiares, ajudando no sustento de casa. Aqui tem a capela, tem missa, uma convivência muito boa, os padres que vêm e conversam com a gente. Padre Gianpietro é um ‘santinho’, está sempre por aqui, dá uma atenção muito especial para a gente, nos dá força”, testemunha.

“Quando vou à capela, agora que tenho fé, sinto a presença de Deus; na frente do sacrário, sinto aquele calor forte no coração, sinto que Deus está comigo e tudo vai mudando; isso liberta a pessoa. Quando penso em beber, descobri um jeito certeiro de mandar a vontade embora: é só ir à capela, falar um pouquinho com Jesus: o pensamento ruim desaparece na hora! Sinto-me completamente recuperado, até já saio à rua sozinho, seguro para enfrentar o mundo”, conclui Sebastião.

‘Limpo perante a justiça dos homens, mas ainda não diante de Deus’

Outro acolhido na “Vila Guadalupe” é João Batista Primo, 27. Natural de Andirá (PR), praticamente fugiu para São Paulo, por conta dos constantes conflitos com o padrasto. Torneiro mecânico de profissão, logo ao chegar, conseguiu emprego e endereço fixo. Cabeça cheia de problemas, sozinho, coração repleto de mágoas e traumas, usou seu primeiro salário numa “biqueira” de crack. Viciou-se, fez amizades ruins. Logo perdeu o emprego, passou a viver na rua.
Meses e anos de desesperança se sucederam. Certo dia, completamente enlouquecido pela abstinência, num assalto para obter dinheiro para comprar a droga, uma vítima reagiu, ele usou a faca. Terminou ceifando uma vida inocente. Preso, foi condenado a 14 anos de cadeia. Com o empenho da mãe e por bom comportamento, saiu após sete anos. Hoje, diz que está “limpo perante a justiça dos homens, mas ainda não diante de Deus”, e procura “se limpar” todos os dias, com muita oração e no serviço voluntário ao próximo. João tem habilidades manuais. Com um Terço na mão, feito por ele mesmo, diz que reza todo dia e praticamente todas as horas pela alma daquele que matou.

João Batista diz que não vai desperdiçar a chance que recebeu. “Sei o que já sofri, o que passei na vida lá fora. Se tiver que ficar dez anos aqui, servindo, fico. Tenho muita vontade de servir a Deus na Missão Belém. Sou monitor e evangelizador. Saio às ruas, falo do amor de Deus para quem está na mesma situação em que eu estava, uso meu testemunho para fazê-los ver que é possível sair, que existe Deus, existe uma outra vida”.

O paranaense também se lembrou de como a família sofreu com seu vício. “Cheguei a querer oferecer o corpo de minha esposa por dinheiro, para comprar droga. Tenho um filho que está agora com 4 anos. Minha esposa atravessou todo esse inferno comigo. Ela chegava à noite do serviço, cansada, carregando uma cesta básica. Eu esperava ela entrar no banho, pegava aquela cesta e saía para vendê-la por qualquer trocado, para comprar droga”, conta com os olhos marejados de lágrimas. “Não sou digno do perdão de Deus, mas sei que Jesus sofreu na cruz por mim; isso me faz ter forças para continuar vivendo e lutando. Eu não teria coragem de sofrer o que ele sofreu pelo bem dos outros, mas tento fazer a minha parte e sei que ele aceita meu sacrifício de bom grado. Hoje sou calmo, tranquilo, paciente. Já fui orgulhoso, soberbo, rancoroso com tudo e com todos. Hoje, sei que Deus manda tribulações para aumentar a minha paciência”.

João esperava com ansiedade a Vigília do Sábado Santo, para que, conforme crê, recebesse o perdão dos seus erros e uma força maior para se tornar reflexo do Cristo no mundo por meio do Batismo. “Fui bandido, mas hoje me considero um ladrão diferente. Fui saqueado pelo demônio, mas hoje tiro almas do poder do diabo e as resgato para Jesus. Sou feliz e vivo uma vida de esperança”.

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