Novos santos brasileiros

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Papa Francisco canoniza 30 mártires do Rio Grande do Norte e diz: ‘é preciso viver o sim a Deus até o fim da vida’
Publicado em: 20/10/2017 - 10:30
Créditos: Redação
L'Osservatore Romano

No período do Brasil colonial, enquanto os holandeses ainda ocupavam o Rio Grande do Norte, mais de 60 pessoas foram assassinadas porque praticavam a fé católica. Os então chamados “morticínios de Cunhaú e Uruaçu”, em 1645, foram verdadeiros massacres: protestantes de tradição calvinista, com a ajuda de índios, torturaram e mataram religiosos, camponeses, mulheres e famílias inteiras. Os mais conhecidos foram os padres André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, e o leigo Mateus Moreira. Mais de 350 anos depois, a Igreja Católica, finalmente, incluiu, no domingo, 15, os seus nomes no livro dos santos. 

De um dia para o outro, o número de santos brasileiros passou de seis para 36. O Papa Francisco canonizou os chamados “30 protomártires brasileiros” na Praça de São Pedro. Embora sejam bem mais de 30, esse foi o número de pessoas que os postuladores da causa (responsáveis pelo processo junto ao Vaticano) conseguiram identificar ao longo dos séculos. Representam, portanto, um grupo ainda maior. 

Quem primeiro os chamou “protomártires” foi o (também santo) Papa João Paulo II. Como explica o Padre Julio César Souza Cavalcanti, responsável por acompanhar o processo de canonização na Arquidiocese de Natal, foi no Congresso Eucarístico de 1991 que São João Paulo II se referiu a eles. “Proto quer dizer ‘primeiros’, portanto, são os primeiros mártires do Brasil. O Papa disse que estava numa terra banhada pelo sangue dos protomártires”, contou o Padre, dois dias antes da canonização, em Roma. 

Na homilia, o Papa Francisco falou dos mártires como exemplo de firmeza na fé. “É preciso viver o amor todos os dias, renovar a escolha por Deus. Os santos canonizados hoje, sobretudo os mártires, não disseram ‘sim’ ao amor só de boca, mas com a vida, e até o fim”, declarou. Junto aos 30 novos santos brasileiros, foram canonizados também três mártires mexicanos – Cristóbal, Antonio e Juan, mortos em 1527 e 1529; o padre espanhol Faustino Míguez, educador católico por 50 anos, falecido em 1925; e o frade capuchinho Angelo D’Acri, pregador, que morreu em 1739.

 

A causa dos santos potiguares 

A história dos protomártires se manteve viva na tradição popular e só o terceiro Arcebispo de Natal, Dom Alair Vilar Fernandes de Melo, deu início ao processo de canonização, em 1988. Os fatos ligados ao morticínio são claros e registrados em documentos no Brasil, em Portugal, na Holanda e no Vaticano. Esses papéis foram localizados pelo Monsenhor Francisco de Assis Pereira, primeiro postulador da causa. 

Conta a história que, na primeira metade do século XVII, os holandeses de tradição calvinista ocuparam parte do Nordeste brasileiro, governado por Maurício de Nassau, de 1637 a 1644. Era ainda recente a Reforma Protestante e havia violência em muitas partes do mundo. Na região, os católicos tiveram a liberdade ameaçada. Durante a missa dominical, em 16 de julho de 1645, o Padre André de Soveral foi massacrado, junto aos seus fiéis, por holandeses e índios, em Cunhaú. Em 3 de outubro, o Padre Ambrósio Francisco Ferro foi cruelmente mutilado, junto a seus fiéis, e deixado para morrer ao relento. Mateus Moreira teve o coração arrancado pelas costas enquanto dizia: “Seja louvado o Santíssimo Sacramento”. 

Os detalhes desse caso ainda não tinham chegado ao Vaticano quando São João Paulo II falou dos protomártires em sua visita de 1991. O Papa polonês soube da devoção, segundo o Padre Julio, por meio do então Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Eugenio de Araújo Sales, morto em 2012. A beatificação ocorreu no ano 2000, pelo mesmo Papa, e três paróquias foram dedicadas aos então beatos André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro e Mateus Moreira, em Natal (RN).

Com a morte do postulador, Monsenhor Assis, em 2011, o atual Arcebispo de Natal, Dom Jaime Vieira Rocha, nomeou um novo responsável, o Cônego José Mario de Medeiros. Sua missão seria buscar o milagre necessário para que fossem chamados “santos”. Porém, um novo intercessor abraçou a causa dos potiguares: o Arcebispo Emérito de São Paulo, Cardeal Cláudio Hummes. 

“Em 2015, houve uma conversa de Dom Cláudio com o Papa Francisco”, disse Padre Júlio César. “Quando ele contou a história, o Papa escreveu um memorando de próprio punho e lhe pediu para levar à Congregação para a Causa dos Santos. Determinou mais celeridade no processo.” Dessa forma, o Santo Padre dispensou a obrigação do milagre. Nomeou-se um terceiro postulador dentro do Vaticano, o Padre Giovangiuseppe Califano. No início de 2017, anunciou-se a canonização para 15 de outubro.

 

Devoção viva e crescente 

O Arcebispo de Natal explicou ao O SÃO PAULO que a história dos 30 mártires potiguares sempre foi vista entre o povo como uma questão de fé. “Esta reverência sempre permaneceu na história do Rio Grande do Norte. Após a beatificação, no ano 2000, foi ainda maior”, disse Dom Jaime. “A cau
sa nunca cessou, mas vivemos uma interrupção profunda, que foi a morte do postulador. Mas, veio a contribuição do Cardeal Hummes, que tinha participado da beatificação em 2000, pois tinha sido Arcebispo de Fortaleza e conheceu muito bem a história”, recordou. “Ele se perguntou, depois da canonização do Padre José de Anchieta: por que não canonizar também os mártires de Cunhaú e Uruaçu?”

Para o Padre Julio César, são três os principais aspectos que a canonização dos protomártires devem trazer para o Nordeste brasileiro. O primeiro deles é o crescimento do turismo religioso, das peregrinações e das romarias. Todos os anos, em 3 de outubro, uma romaria de motos, que parte do Santuário dos Mártires em Natal, até um dos locais de martírio, já reúne até 2 mil pessoas. O segundo é uma maior atenção ao estudo da história do Nordeste, especialmente do período de ocupação holandesa. 

O terceiro aspecto é a maior atenção ao diálogo entre tradições religiosas. “Temos a tendência de julgar a história do passado com os olhos de hoje”, afirmou. “Não queremos condenar os protestantes ou índios de hoje pelo que aconteceu naquele tempo. Estamos relatando um fato para provar que pessoas daquela época foram capazes de resistir por causa da fé. Se acontecesse conosco hoje, será que resistiríamos?”, concluiu.