‘Pela nossa espiritualidade, somos impulsionados para estas pobrezas’

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Padre Gianpietro, fundador da Comunidade Missão Belémda, falau sobre a realidade da pobreza na metrópole, em entrevista ao O SÃO PAULO
Publicado em: 17/11/2017 - 12:45
Créditos: Redação

Missão Belé

“Eu estava na catraca e não tinha o suficiente para entrar no metrô, então, veio em minha direção um pobre que me reconheceu e perguntou se eu precisava de ajuda para passar. E assim, com a ajuda dele, eu pude embarcar no metrô”, contou à reportagem do O SÃO PAULO o Padre Gianpietro Carraro, na entrevista dada por ele na Casa Guadalupe, que acolhe pessoas em situação de rua e doentes no bairro do Belém, na zona Leste.

A pobreza é, na vida do Padre Gianpietro, 55, uma vocação. Ele, que nasceu em Veneza, na Itália, veio para o Brasil há 23 anos e, desde então, dedica-se à evangelização por meio do serviço aos pobres. No ano 2000, Padre Gianpietro começou, junto com a Irmã Cacilda da Silva Leste, 44, a Comunidade Missão Belém, que foi fundada oficialmente em 2005, em São Paulo. Desde então, eles visitam, diariamente, as pessoas de rua, principalmente na região central da Capital Paulista.

Na entrevista, concedida por ocasião do Dia Mundial dos Pobres, proclamado pelo Papa Francisco em 2016, e que será celebrado pela primeira vez este ano, em 19 de novembro, o Padre Gianpietro fala sobre a realidade da pobreza na metrópole e o que é preciso para que uma pessoa se aproxime do pobre.

 

O SÃO PAULO – DE QUE TIPO DE POBREZA SE REFERE O PAPA NA MENSAGEM PARA O DIA MUNDIAL DOS POBRES?

Padre Gianpietro Carraro - O Papa fala que nunca como neste tempo foi difícil interpretar a pobreza e falar sobre ela. Ele diz isso porque há um tipo de pobreza sobre a qual as pessoas falam e que é compreendida espontaneamente: a falta de comida, a falta de bebida, a falta de moradia e tudo o que podemos acrescentar a isso, até mesmo as pessoas perseguidas em todo este mundo [da migração e do refúgio]. Porém, há uma pobreza particular, como por exemplo, a Cracolândia. É uma pobreza fruto da droga, do vício, de uma vida desregrada. Existe fome na Cracolândia, porque as pessoas, ao invés de comprar comida, usam o dinheiro para comprar crack. Contudo, a fome final é sempre a mesma, é só olhar as pessoas esqueléticas que estão andando por lá como zumbis.

 

AS PESSOAS TÊM RESISTÊNCIA A SE APROXIMAR DESSE TIPO ESPECÍFICO DE POBREZA?

Quando uma pessoa se aproxima da pobreza, ela pode ter uma reação instintiva negativa, no sentido que, se há um idoso ou uma criança que precisa, todos abrem o coração, mas se veem que este pobre jogado na rua tem uma garrafa de bebida ao lado, pode-se ter mais dificuldade em ajudar. Porém, é necessário compreender que essa pobreza, que chamamos de maligna, contém a pobreza que Deus quer de todo o cristão e de todo fiel [a saída do pecado]. O exemplo disso é o amor que Deus teve pela ovelha desgarrada, pelo filho pródigo ou pelos pecadores e publicanos, de quem Jesus gostava de estar próximo. O pecado também é uma forma de pobreza. É uma pobreza que requer conversão e mudança, mas não deixa de ser pobreza. O Papa fala claramente, em seu discurso, que o fato de criar uma rejeição espontânea quando a droga, o vício e a pobreza estão vinculados não justifica o ato de o cristão virar as costas para o pobre. 

 

HOUVE UM AUMENTO DA POBREZA NOS ÚLTIMOS ANOS EM SÃO PAULO?

Pela nossa experiência de rua, podemos dizer que muita coisa aumentou. Quando começamos a visitar a Cracolândia, no ano 2000, ela era diferente. Eram 10, 20 pessoas na rua Gusmão e nos arredores. E não tinha também o chamado fluxo, centenas de pessoas aprisionadas pelo vício do crack sem nenhuma intervenção. Também podemos ver esse aumento pela questão das vagas em albergues. As estatísticas do IBGE dizem que o Brasil é um campeão de desigualdade social. Posso dizer, seguramente, que não houve uma diminuição ou uma solução para a questão da pobre
za. E não só no Brasil, mas também em nível mundial. 

 

O QUE O MOTIVA NESTES MUITOS ANOS DE TRABALHO JUNTO AOS POBRES?

Precisamos ter consciência que, pela nossa espiritualidade, e pelo que o Evangelho nos pede, somos impulsionados a trabalhar com os pobres. Somos impulsionados para estas pobrezas e, é claro que, com paixão, amor, com vontade, não por dinheiro, porque não é isso que interessa a nós, mas por causa do amor, que Jesus colocou nos nossos corações. Assim, os caminhos se abrem e outras pessoas são chamadas a colaborar de alguma maneira.

 

COMO PODEMOS APRENDER A NOS APROXIMAR DOS POBRES? 

Muitas pessoas são pagas para se aproximarem das pessoas de rua, mas não é fácil. Basta olharmos o quanto se gasta em projetos, que não têm retorno, muitas vezes. Lembro-me de uma frase do nosso amigo e Padre Julio Lancellotti [Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo] que há muito tempo trabalha nesse campo e contou que, uma vez, uma senhora se aproximou dele e pediu: “Padre, tem uma pessoa pobre em frente à minha casa, para aonde vou encaminhá- lo?”. E ele respondeu: “Senhora, o encaminhe para o seu coração”. Essa frase é bem interessante porque nos diz o que é necessário fazer. A primeira coisa é olhar o irmão da rua como uma pessoa humana, como seu irmão. E devemos pensar que ele poderia mesmo ser seu irmão de sangue, que chegou a uma dificuldade e para virar de rua, são necessários apenas dois dias sem comer e sem tomar banho. Basta isso para alguém ser considerado uma pessoa de rua. Não é uma coisa de outro mundo. Parar, conversar, abaixarse, sentar com ele na rua, ver se ele está com fome, comprar um pão, uma água, não dar dinheiro. Se tiver um pouco mais de tempo, comer com ele e, se perceber que é possível, convidar para a própria casa. Conversar e, a partir desse diálogo, sem dúvida, vão nascer ideias e soluções. Em primeiro lugar, é preciso acolhida e, a partir disso, Deus vai abrir caminhos para que você possa ajudar esse irmão.

 

MUITAS PESSOAS NÃO O FAZEM PORQUE TÊM MEDO...

Sim, é verdade. Mas, quase sempre, em 99% dos casos, quando começa um relacionamento humano, não há mais perigo. Há quanto tempo estamos [os missionários e voluntários da Missão Belém] na rua – e esse crucifixo nos protege muito – nunca aconteceu nada de desagradável conosco. 

 

E SOBRE AS PERIFERIAS EXISTENCIAIS? O PAPA TAMBÉM FALA QUE PRECISAMOS CHEGAR ATÉ ELAS...

Quando o Papa fala das periferias existenciais, fala sobre as pobrezas que estão dentro das periferias. O conceito de periferia não é o mesmo de 40 ou 50 anos atrás. Você encontra a periferia na área urbana. Os dados oficiais da Prefeitura de São Paulo indicam quase 20 mil pessoas em situação de rua, mas nossa experiência de mais de 20 anos nos faz crer que existam mais de 40 mil. Temos a situação da periferia no centro de São Paulo, circunscrita no centro de São Paulo. Não podemos pensar que a pobreza está só na África ou na Etiópia. A pobreza está em São Paulo e precisamos ter olhos para ver isso. É misterioso, pois São Paulo é a terceira capital do mundo, uma região rica, o umbigo da América Latina, mas existem bolsões de pobreza terríveis que nós somos chamados a enxergar e o Papa nos abre os olhos para essas pobrezas, essas periferias urbanas.

 

COMO A MISSÃO BELÉM ESTÁ SE PREPARANDO PARA CELEBRAR O DIA MUNDIAL DOS POBRES?

A mensagem do Papa para o Primeiro Dia Mundial dos Pobres é uma mensagem longa, bonita, detalhada que ajuda muito e toda a Missão Belém reflete sobre essa mensagem por meio do Diário Espiritual, que é uma reflexão diária sobre o Evangelho. No mês de novembro, estamos unindo a mensagem do Papa ao Evangelho do dia. 

 

As opiniões expressas na seção “com a palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal.