Sou padre, filho dos colonos Helena e Gabriel Arns

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Dom Paulo Evaristo Arns escreve sobre a história de sua vocação
Publicado em: 14/12/2016 - 13:30
Créditos: Jornal O SÃO PAULO

(Texto em primeira pessoa do Cardeal Arns, extraído do livro “Dom Paulo Evaristo Arns – Da esperança à utopia”, páginas 33 a 35)

“Como você chegou a ser padre”?, me perguntam com freqüência jornalistas e amigos íntimos.

Qualquer coisa que tenha feito em minha vida ou ainda chegue a realizar explica o fato de eu ser padre. Fui por longos anos professor, mas sempre padre-professor, ao ensinar literatura, teologia ou didática. Escrevi livros e milhares de artigos mesmo antes da ordenação sacerdotal. Trazem a marca de padre. Amei muito na vida e passei por situações humilhantes, por calúnias graves e muito difundidas, mas sempre como padre ou porque desejei cumprir a missão que Cristo me confiou. Meu lema de bispo, arcebispo e cardeal – “De esperança em esperança” – foi escolhido na época em que eu era simples padre.

Nem me custa acrescentar: gostaria de ver as angústias e promessas do mundo com o coração de padre. E quando, um dia, o coração deixar de bater, que o amor encontre na vida eterna a mesma forma de ser padre, assim como Cristo, o eterno sacerdote, o dispuser (...)

Desde criança, na colônia, nós que queríamos ser padres nos unimos em grupos: diocesanos, dehonianos (do Coração de Jesus) ou franciscanos.

Até no futebol formávamos um time contra os outros. E infalivelmente os “padres” ganhavam, até quando emprestavam jogadores – não dos melhores – para o outro lado.

Na hora em que chegou o Padre Linnartz, que iria pastorear por algum tempo as colônias alemã e polonesa, nós éramos os coroinhas natos.

Da parte de mamãe e dos irmãos, só incentivos. Sobretudo à noite, quando rezávamos as três ave-marias pelos padres e seminaristas. A oração ainda não era em meu favor, mas certamente o seria.

Mais tarde soube o quanto minha mãe rezava pelas vocações. No retiro que fizemos juntos e sós para minha ordenação de bispo, numa chácara próxima a Curitiba, pude tirar a prova.

Mamãe sempre rezando: quatro ladainhas, alguns terços e outras longas orações. Foi por meio dessa atitude de oração que ela pregou o meu retiro. E também cozinhando, com os condimentos que ela tão bem sabia acrescentar ao feijão, ao arroz e aos outros alimentos colocados na mesa.

O maior impacto do retiro, o maior choque emocional ocorreu quando entrei bem de mansinho no quarto e cheguei por detrás da cadeira para descobrir que o que ela rezava era a “Oração pelo Bispo”. Ela me olhou surpresa e um tanto compadecida. “Paulo, até hoje eu sempre mencionava o nome de dom Anselmo (dom Anselmo Pietrulla, bispo de Tubarão, a diocese a que pertencia Forquilhinha) e dom Manuel (dom Mamuel Delboux, arcebispo de Curitiba). Hoje posso também colocar aqui o teu nome?”.

Nunca soube como minha mãe adquiriu tanto senso eclesial. Ela conhecia tudo sobre a Igreja, num tempo e naquela colônia recém-fundada onde não existiam recursos de formação. Hoje atribuo  seu conhecimento aos excelentes almanaques ou “calendários” alemães que recebíamos dos jesuítas do Rio Grande do Sul, de padres franciscanos e, indiretamente, dos padres do Verbo Divino (a revista Stadt Gottes).

Mamãe sabia de cor, em latim, todas as respostas que cabiam ao coroinha, e as ensinou a mim. Também me orientou no comportamento litúrgico dos coroinhas no altar durante as celebrações religiosas.

Ela certamente trouxe os seus dois filhos padres e suas três filhas religiosas desde o ventre até o altar de Deus.

Papai, amigo, conselheiro dos padres e por eles aconselhado, jamais me disse uma palavra de incentivo nem de desaprovação. Retardou por dois anos minha ida para o seminário. No dia em que lhe disse de novo, aberta e claramente, que desejava “estudar para padre”, estávamos indo para a roça. Ele, já doente, para inspecionar, e eu para ajuda-lo no que fosse necessário.

Ao ouvir meu pedido, meu pai parou. E eu o vejo ainda hoje, na sua estatura robusta, com os olhos sempre pensativos e a palavra escassa bem medida e irrevogável: “Filho, você pode ir. Estude e se esforce . Mas nunca me dê o desgosto de não se considerar ou comportar como filho de colono. Papai é colono, e você, mesmo depois de estudar muito, sempre será filho de colono e de seu povo.”

Lembrei-me disso quando ele morreu, um ano antes de minha ordenação episcopal. Mas também foi essa a minha impressão mais forte quando, solenemente, num dos anfiteatros de Paris, diante de grande assembléia, fui declarado Doutor da Universidade de Paris.

Hoje, quando os doutorados e outros títulos incomodam em vez de empolgar, lembro-me de que tenho um, guardado como numa espécie de juramento a meu pai: sou padre, mas tirado dentre o povo. Um filho dos colonos Helena e Gabriel Arns.

Especial Dom Paulo Evaristo Arns