Natal: sonho e realidade

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25/12/2014 - 00:00

Entre os textos da liturgia católica no tempo do Advento, que antecede o Natal, destaca-se pela poesia e pela esperança que carrega o capítulo 11 do livro do profeta Isaías, sobre os tempos messiânicos: “um broto sairá do tronco de Jessé, e um rebento nascerá de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor... Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito, o touro e o leão comerão juntos, e um menino pequeno os conduzirá; a vaca e o urso se fraternizarão, suas crias repousarão juntas, e o leão comerá palha com o boi. A criança de peito brincará junto à toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra estará cheia da ciência do Senhor, assim como as águas enchem o mar”

No tempo do Natal, cristãos e não-cristãos são tocados pela alegria, por sentimentos de solidariedade e fraternidade, sorriem e se abraçam e multiplicam gestos de fraternidade. Os pobres são lembrados; a cidade grande se faz bonita, enche-se de luzes, ergue árvores enfeitadas. O povo troca presentes, há um ir e vir de cartões recheados de palavras gentis e bons votos.

Parece um pouco o mundo novo descrito por Isaías. Acabado, porém, o período de festas, tudo volta a ser como antes. Adiamos o mundo novo que vivemos no Natal; fazemos o estágio, treinamos e ficamos por aí... Não estaria na hora de por mãos à obra e continuar a construção desse mundo bonito anunciado pelo profeta e experimentado no Natal?

É preciso reconhecer que muitos vivem um tempo de Natal permanente, tocados pela fé ou simplesmente pelos sentimentos de fraternidade e solidariedade. Penso em hospitais, como a Maternidade Amparo Maternal; no trabalho dos grupos que se dedicam à população de rua ou da cracolândia; penso nas obras assistenciais e de promoção humana de várias denominações cristãs e não cristãs. Cristo criança, Cristo pobre, Cristo descartado pela economia baseada no lucro, é acolhido, curado, valorizado, amado de mil modos e jeitos. Louvado seja Deus por isso!

Devemos, porém, tomar consciência do mundo de dor e solidão, de miséria absoluta e abandono em que ainda vivem filhos amados de Deus; precisamos ir além do estágio, ir do ensaio à prática. Deus concretizou o seu desígnio de salvação, fazendo com que seu Filho, que era Deus no céu, viesse a ser Deus na terra; que era Deus com o Pai e o Espírito Santo desde sempre viesse a nós, para ser Emanuel-Deus conosco.

A presença do Filho de Deus encarnado em nossa realidade humana nos ajude a construir o mundo sonhado por Isaías, para que a paz cubra a nossa terra como um manto.  Que o bem praticado se multiplique. Que os corações abertos ao Cristo que vem ao nosso encontro permaneçam abertos ao Cristo ferido, humilhado descartado, desempregado, deitado sob as nossas marquises e pontes, emigrante, refugiado, Cristo criança, adolescente, jovem, adulto, idoso, homem, mulher. Feliz vivência do Natal para todos!
 

Artigo publicado no Portal UOL em 25 de dezembro de 2014


Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo