ASCESE CRISTÃ

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27/01/2015 - 00:00

Ascese parece ser uma palavra desconhecida de muitos, hoje. Parece um termo que ficou engessado num passado bastante distante. Será mesmo? A realidade é que a ascese continua existindo e desfrutando de amplo espaço no cotidiano de nosso povo. Evidentemente, não o termo, mas a vida disciplinada, que se constitui no núcleo, propriamente, da ascese. Uma vida regulada por dietas, exercícios físicos é assunto relevante para a cultura contemporânea. Pessoas de todas as idades se exercitam, caminham ou correm diariamente e, quando podem, submetem-se a privações alimentares de certas dietas e processos de purificação em ‘spas’, para recuperar ou preservar a saúde. Homens e mulheres submetem-se diariamente a exercícios físicos, e até mesmo a jejuns, para manter um corpo esbelto, magérrimo, segundo os atuais padrões de beleza. Do mesmo modo, atletas se sujeitam a exigentes programas de condicionamento físico, para serem competitivos.

Mesmo sem referência a valores religiosos, esta realidade é importantíssima para a reflexão teológica, pois revela que a disciplina é um dado fundamental da existência humana. É um imperativo antropológico, algo que não pode ser simplesmente eliminado, sem graves prejuízos ao ser humano. Para se alcançar objetivos, independentemente da motivação originária, é indispensável o esforço pessoal, uma vida pautada pela disciplina. A ascese, em sentido amplo, é isso: disciplina para atingir um objetivo. Por essa razão, a ascese é parte integrante da educação humana.

Pois bem, vamos refletir, nas próximas semanas, sobre a importância da ascese para a espiritualidade cristã.

A identidade cristã: fundamento teológico da ascese

A identidade cristã está diretamente relacionada à nossa estrutura antropológica: ‘fomos criados à imagem e semelhança de Deus’ (cf. Gn 1, 26-27). Não somos nós os autores desta identidade, ela nos é oferecida gratuitamente por Deus Pai, que livremente nos criou. Todavia, bem sabemos que esta imagem foi quebrada e a semelhança foi desfigurada, pelo pecado (cf. Gn 3, 1-13). Mas novamente nossa identidade é restaurada por Jesus Cristo, que nos recriou através de seu Mistério Pascal: “Pois Deus quis fazer habitar nele (em Cristo) toda a plenitude e, por ele, reconciliar consigo todos os seres, tanto na terra como no céu, estabelecendo a paz, por meio dele, por seu sangue derramado na cruz” (Cl 1, 19-20).

Através do Mistério Pascal, toda a criação é ‘recapitulada’ em Cristo (cf. Ef 1, 7-10). A partir de então, em Cristo ressuscitado, glorioso, é restaurada na natureza humana a identidade divina. Cristo é, simultaneamente, ‘modelo de santidade’ e ‘fonte de santificação’. Tornar-se semelhante a Cristo é uma obrigação intrínseca, um imperativo, para nós, cristãos. Pois cristão é justamente aquele que deixa Cristo se formar nele (cf. Gl 4, 19). A identidade do cristão é a mesma identidade de Jesus Cristo, com a única distinção de que, Cristo é Filho de Deus por natureza, e nós o somos por adoção. Cristo é o ‘primogênito entre muitos irmãos’ (cf. Rm 8, 29).

No processo histórico de tornar-se ‘filho de Deus, em Cristo’ encontra-se a nossa ‘identidade’, a nossa vocação última. Pelo batismo somos como que ‘gerados filhos de Deus’, no seio da Igreja, Esposa de Jesus Cristo, e Mãe de todos os renascidos nas águas do batismo. A identidade cristã começa a existir a partir deste momento. Com o batismo tem início nosso processo de configuração a Jesus Cristo.

O batismo, além da remissão dos pecados, confere ao cristão a ‘graça santificante’, tornando-o um ‘homem novo’ (cf. Ef 2, 15; 4, 24; Cl 3, 10), participante da natureza divina (cf. 2Pd 1, 4), templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 6, 19), unido a Cristo e a seu Corpo que é a Igreja (cf. 1Cor 6, 15; 12, 27), e capacitado a caminhar numa existência nova (cf. Rm 6, 4), libertada do poder do pecado.

Contudo, nosso comportamento ético deve ser manifestação do que aconteceu e foi celebrado no sacramento do batismo. Dito de outro modo, a ‘santidade ontológica’ deve se transformar em ‘santidade moral’. Sem a superação do ‘homem velho’ não é possível viver a nova existência, própria do ‘homem novo’, pois a morte ao pecado é o único caminho para o objetivo que realmente interessa: a vida nova da ressurreição. O ‘homem velho’ é o ‘Adão pecador’. É preciso morrer a si mesmo para participar da existência do ‘homem novo’, do ‘Novo Adão’, Jesus Cristo.

Enfim, o batismo cria o homem novo, mas seu desenvolvimento não ocorre automaticamente, pois é imperativa a colaboração humana. Desse modo, como bem alerta São Paulo, existe o risco real de a graça ser desperdiçada (cf. 2Cor 6, 1). Infelizmente, muitos cristãos recebem o batismo, mas acabam retornando à antiga vida do ‘homem velho’, prisioneiro do pecado. Falta para esses cristãos a colaboração com a graça. Falta-lhes “ascese”.