Trabalho, casa e terra

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25/11/2015 - 09:45

À conversa com o Papa Francisco

É ainda cedo quando nos apresentamos ao portão de entrada do Vaticano, à esquerda da Basílica de São Pedro. A guarda suíça está informada da nossa chegada e fazem-nos entrar. Devemos ir à Casa de Santa Marta, porque é ali que mora o Papa Francisco. Aquela Casa de Santa Marta provavelmente é o hotel de três estrelas mais especial do mundo. Um grande edifício branco onde pernoitam cardeais e bispos que desempenham o seu serviço no Vaticano ou que ali se encontram de passagem e é também ali que se hospedam os cardeais durante o conclave.

Também aqui estão informados da nossa chegada. Duas senhoras na recepção, como em qualquer hotel, gentilmente indicam-nos uma porta lateral. A sala do encontro já foi preparado. Um espaço bastante grande com uma escrivaninha, um sofá, algumas mesinhas e cadeiras. Marc, o vendedor de “Straatnieuws”, é o mais tranquilo de todos e aguarda, sentado numa cadeira, o que acontecerá.

De repente apresenta-se um fotógrafo oficial. “O Papa está para chegar”, anuncia-nos. E antes que nos apercebamos entra o Papa Francisco, o chefe espiritual de 1,2 biliões de católicos. Traz consigo um enorme envelope branco. “Estai sentados, amigos”, diz fazendo um gesto gentil com a mão, “que prazer que estais aqui”. O Santo Padre dá a impressão de ser um homem calmo e afável, mas ao mesmo tempo enérgico e preciso. Quando se sentou pediu desculpa por não falar holandês. Imediatamente o perdoamos.

As nossas entrevistas começam sempre com uma pergunta sobre a rua onde o entrevistado cresceu. O que se recorda Vossa Santidade daquela rua? Que imagens lhe vêm à mente quando pensa nas ruas da sua infância?

Eu vivi sempre na mesma rua desde quando tinha um ano até à entrada no seminário. Era um bairro simples de Buenos Aires, as casas eram todas baixas. Havia uma praceta, onde nós jogávamos à bola. Recordo-me que fugia de casa para ir jogar futebol com os jovens depois da escola. Depois o meu pai trabalhava numa fábrica que estava a 100 metros. Era contabilista. E os avós habitavam a 50 metros. Todos perto uns dos outros. Recordo também os nomes das pessoas, como sacerdote fui administrar os sacramentos, o conforto derradeiro a muitos, que me chamavam e eu ia porque gostava deles. São estas as minhas recordações espontâneas.

O Santo Padre também jogava futebol?

Sim.

Jogava bem?

Não. Em Buenos Aires aos que jogavam futebol comigo, chamavam-nos pata dura. Que significa ter duas pernas esquerdas. Mas jogava, muitas vezes era o guarda-redes.

Como surgiu o seu compromisso pessoal pelos pobres?

Sim, vêm-me à mente muitas recordações. Comoveu-me muito uma senhora que vinha a casa três vezes por semana para ajudar a minha mãe. Por exemplo, ajudava na lavanderia. Ela tinha dois filhos. Eram italianos, sicilianos e viveram a guerra, eram deveras pobres, mas muito bons. E nunca me esqueci daquela mulher. A sua pobreza comovia-me. Nós não éramos ricos, normalmente chegava-se ao fim do mês, mas não mais. Não tínhamos um carro, não íamos de férias ou coisas assim. Mas a ela muitas vezes faltava o necessário. Nós tínhamos o suficiente e a minha mãe dava-lhe coisas. Depois ela regressou à Itália, e em seguida voltou para a Argentina. Vi-a de novo quando era arcebispo de Buenos Aires, ela tinha 90 anos. E acompanhei-a até à morte com 93 anos. Um dia ela ofereceu-me uma medalha do Sagrado Coração de Jesus que ainda trago comigo todos os dias. Esta medalha - que é também uma recordação - faz-me muito bem. Quer vê-la? (Com um pouco de dificuldade, o Papa consegue mostrar a medalha, completamente descolorida depois de a ter usado por anos). Assim penso nela todos os dias e em quanto sofreu devido à pobreza. E penso em todos os outros que sofreram. Tenho-a comigo e rezo...

Qual é a mensagem da Igreja aos desabrigados? O que significa concretamente para eles a solidariedade cristã?

Vêm-me à mente duas coisas. Jesus veio ao mundo sem casa e fez-se pobre. Depois a Igreja deseja abraçar todos e dizer que é um direito ter um abrigo. Nos movimentos populares trabalha-se com três “t” espanholas, trabajo (trabalho), techo (casa) e tierra (terra). A Igreja prega que cada pessoa tem direito a estes três “t”.

Vossa Santidade pede com frequência atenção pelos pobres e pelos refugiados. Não teme que desta forma se possa gerar uma forma de saturação nos meios de comunicação e na sociedade em geral?

A todos nós vem a tentação - quando se insiste sobre um tema que não agrada, porque é desagradável falar dele - de dizer: “Mas, chega: esta coisa cansa demais”. Eu sinto que o cansaço existe, mas não o temo. Eu tenho que continuar a falar das verdades e de como as coisas são.

É o seu dever?

Sim, é o meu dever. Sinto-o dentro de mim. Não é um mandamento, mas enquanto pessoas todos o devemos fazer.

Não receia que a sua defesa da solidariedade e da ajuda aos desabrigados e outros pobres possa ser usada politicamente? Como deve falar a Igreja para ser influente e ao mesmo tempo permanecer fora das formações políticas?

Há caminhos que levam a erros naquele ponto. Gostaria de frisar duas tentações. A Igreja deve falar com a verdade e também com o testemunho: o testemunho da pobreza. Se um crente fala da pobreza ou dos desabrigados e leva uma vida de faraó: isto não se pode fazer. É este o primeiro testemunho. Outra tentação é fazer acordos com os governos. Podem-se fazer acordos, mas devem ser acordos claros, transparentes. Por exemplo: nós gerimos este palácio, mas as contas são todas controladas, para evitar a corrupção. Porque há sempre a tentação da corrupção na vida pública. Tanto política como religiosa. Recordo-me de que certa vez vi com grande sofrimento - quando a Argentina sob o regime dos militares entrou em guerra com a Grã-Bretanha pelas Ilhas Malvinas - que as pessoas ofereciam coisas, e vi que tanta gente, até católicos, que tinham a tarefa de as distribuir, as levava para casa. Há sempre o perigo da corrupção. Uma vez perguntei a um ministro da Argentina, um homem honesto. Um que deixou o cargo porque não podia concordar com algumas coisas pouco claras. Perguntei-lhe: quando enviais ajudas - quer sejam refeições, roupa, dinheiro, aos pobres e aos indigentes - daquilo que enviais, quanto chega ao destino, quer em dinheiro quer em despesa? Respondeu: 35 por cento. Significa que 65 por cento se perde. É a corrupção, uma parte para mim, outra para mim.

Vossa Santidade pensa que até agora no seu pontificado pôde obter uma mudança mental, por exemplo na política?

Não saberia o que responder. Não sei. Sei que alguém disse que eu sou comunista. Mas é uma categoria um pouco antiquada (riu). Talvez hoje se usem outras palavras para dizer isto...

Marxista, socialista...

Disseram tudo isso.

Os desabrigados têm problemas financeiros, mas cultivam a própria liberdade. O Papa não tem necessidade material alguma, mas é considerado por alguns como um preso no Vaticano. Nunca sente o desejo de estar no lugar dos desabrigados?

Recordo-me do livro de Mark Twain O príncipe e o pobre. Quando alguém pode comer todos os dias, tem roupa, uma cama onde dormir, uma escrivaninha para trabalhar e nada lhe falta. Tem também amigos. Mas este príncipe de Mark Twain vive numa gaiola de ouro.

Sente-se livre aqui no Vaticano?

Dois dias depois de ter sido eleito Papa, fui, como se diz oficialmente, tomar posse dos aposentos papais no Palácio Apostólico. Não é um apartamento luxuoso. Mas é amplo, é grande. Depois de ter visto este apartamento, ele pareceu-me um funil ao contrário, ou seja, grande mas com uma porta pequena. Isto significa estar isolado. E pensei: não posso viver aqui, simplesmente por motivos psicológicos. Não me faria bem. No início parecia estranho, mas pedi para permanecer aqui, em Santa Marta. E isto faz-me bem porque me sinto livre. Como na sala de jantar onde comem todos. E quando chego mais cedo como com os empregados. Encontro pessoas, cumprimento-as e isto faz com que a gaiola de ouro seja menos gaiola. Sinto falta da rua.

Santo Padre, Marc deseja convidá-lo para vir comer uma pizza conosco. O que acha?

Gostaria muito, mas não o conseguiremos fazer. Porque no momento em que sair daqui, virão pessoas ter comigo. Quando fui trocar as lentes dos meus óculos na cidade, eram 7 da tarde. Não havia muita gente pelas ruas. Levaram-me ao oculista e quando saí do carro havia ali uma mulher que me viu e gritou: “O Papa”. E enquanto eu estava dentro, fora juntou-se muita gente.

Falta-lhe o contato com as pessoas?

Não me falta porque vêm aqui muitas pessoas. Todas as quartas-feiras vou à praça para a Audiência geral, algumas vezes vou a uma paróquia: estou em contato com o povo. Por exemplo ontem (26 de Outubro) vieram mais de cinco mil Rom à sala Paulo VI.

Nota-se que Vossa Santidade gosta de girar na praça durante a Audiência geral.

É verdade. Sim, é verdade.

O seu homônimo São Francisco escolheu a pobreza radical e vendeu até o seu evangeliário. Como Papa e bispo de Roma, sente-se alguma vez sob pressão para vender os tesouros da Igreja?

Esta é uma pergunta fácil. Não são os tesouros da Igreja, mas os tesouros da humanidade. Por exemplo, se amanhã eu quisesse pôr em leilão a Piedade de Miguel Ângelo, não o posso fazer, porque não é propriedade da Igreja. Está numa igreja, mas é da humanidade. Isto é válido para todos os tesouros da Igreja. Mas começamos a vender prendas e outras coisas que me são oferecidas. E o ganho da venda é entregue a D. Krajewski, que é o meu esmoler. E depois há a rifa. Haviam carros que foram todos vendidos ou dados para uma rifa e o lucro é usado para os pobres. Mas há coisas que podem ser vendidas e vendem-se.

Dá-se conta de que a riqueza da Igreja pode criar este tipo de expectativas?

Sim, se fizermos um catálogo dos bens da Igreja, pensa-se: a Igreja é muito rica. Mas quando foi feita a Concordata com a Itália, o governo italiano daquela época ofereceu à Igreja um grande parque em Roma. O Papa de então, Pio XI, disse: não, gostaria de ter apenas meio quilometro quadrado para garantir a independência da Igreja. Este princípio ainda é válido. Sim, os bens imóveis da Igreja são muitos, mas usamo-los para manter as estruturas da Igreja e para manter tantas obras que se fazem nos países necessitados: hospitais, escolas. Ontem, por exemplo, pedi que fossem enviados ao Congo 50 mil euros para construir três escolas em aldeias pobres, a educação é uma coisa importante para as crianças. Fui à administração encarregada, fiz este pedido e o dinheiro foi enviado.

Falemos da Holanda. Esteve alguma vez no nosso país?

Uma vez quando era superior provincial dos jesuítas da Argentina. Passei por lá durante uma viagem. Estive em Wijchen, porque o noviciado estava lá, e estive também em Amesterdã durante um dia e meio, onde visitei uma casa dos jesuítas. Da vida cultural não vi nada porque não tinha tempo.

Por isso poderia ser uma boa ideia se os desabrigados da Holanda o convidassem para uma visita ao nosso país. Que acha, Santo Padre?

As portas não estão fechadas a esta possibilidade.

Portanto, quando este pedido for feito, Sua Santidade vai tê-lo em consideração?

Considero-o. E agora que a Holanda tem uma rainha argentina (riu), quem sabe.

Tem por acaso uma mensagem especial para os desabrigados do nosso país?

Não conheço bem a situação dos desabrigados na Holanda. Gostaria de dizer que a Holanda é um país progredido com muitas possibilidades. Eu diria para pedir aos desabrigados holandeses que continuem a lutar pelos três “t”.

No final também Marc faz algumas perguntas. Deseja saber, entre outras coisas, se o Papa quando era pequeno sonhava tornar-se Papa. O Santo Padre responde com um resoluto “não”.

Mas digo uma confidência. Quando eu era pequeno não havia lojas onde se vendiam coisas. No seu lugar havia a feira onde se encontrava o talho, a frutaria, etc. Eu ia lá com a mãe e a avó fazer compras. Era pequenino, tinha quatro anos. E uma vez perguntaram-me: “O que gostarias de fazer quando fores grande?”. Respondi: “Açougueiro!”.

Para muitos, até 13 de Março de 2013 Vossa Santidade era desconhecido. Depois, de um momento para outro tornou-se famoso em todo o mundo. Como viveu esta experiência?

Aconteceu e eu não o esperava. Não perdi a tranquilidade. E isto é uma graça de Deus. Não penso tanto no fato de ser famoso. Digo a mim mesmo: agora ocupo um lugar importante, mas daqui a dez anos ninguém mais te conhecerá (riu). Sabes, há dois tipos de fama: a fama dos “grandes” que fizeram coisas grandiosas, como Madame Curie, e a fama dos vaidosos. Esta última é como uma bolha de sabão.

Portanto, Vossa Santidade diz “agora estou aqui e tenho que fazer o melhor que posso” e continuará este trabalho enquanto for capaz?

Sim.

Santo Padre, pode-se imaginar um mundo sem pobres?

Eu gostaria de um mundo sem pobres. Deveríamos lutar por isto. Mas eu sou um crente e sei que o pecado está sempre dentro de nós. E há sempre a avidez humana, a falta de solidariedade, o egoísmo que cria os pobres. Por isso, me parece um pouco difícil imaginar um mundo sem pobres. Se o senhor pensar nas crianças exploradas para o trabalho escravo, ou nas crianças exploradas para o abuso sexual. E outra forma de exploração: matar crianças para lhes tirar os órgãos, o tráfico de órgãos. Matar crianças para lhes tirar os órgãos é cupidez. Por isso não sei se conseguiremos fazer um mundo sem pobres, porque há sempre o pecado e leva-nos ao egoísmo. Mas devemos lutar, sempre... sempre.

Terminamos. Agradecemos ao Papa a entrevista. Também ele nos agradece e diz que gostou muito do diálogo. Depois pegou no envelope branco que ficou todo o tempo ao seu lado no sofá e tirou dele um rosário para cada um de nós. Fizeram fotografias e depois o Papa Francisco despediu-se. Agora sai pela porta tão tranquilo e descontraído como quando chegou.

Fonte: Edição nº 46 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – páginas 04-05